Ilustração: Rafael Sica
Ilustração: Rafael Sica
Faz de conta que o Coronavírus e uma Vacina (sem sobrenome, para evitar que o autor seja processado por qualquer laboratório) são apenas dois corações solitários numa noite fria. E faz de conta que há um piano-bar convidativo, onde é permitida a entrada de seres imaginários.
A Vacina chegou antes. Ela está exausta: foi um dia puxado, com mais de um milhão e duzentas mil aplicações. Ela toma um drinque, quer relaxar, esquecer de tanto entra e sai em êmbolos. Tudo que ela não quer é pensar em anticorpos.
Mas a noite não concorda:
– Oi, boneca. Posso resolver todos os seus problemas.
– Peraí, eu não tenho nenhum problema.
– Como não, lindinha: e eu aqui?
O Coronavírus, que se acha um Bogartvírus, ri com a própria piada. Recebe de volta um olhar mais gelado que o cubo de gelo no copo. Como se dissemina melhor no clima frio e seco, insiste:
– Você vem sempre imunizar aqui, gata?
Vacina relembra de quantos braços se ofereceram a ela nos postos de saúde durante o dia. Repara que o Corona nem ombros tem. Com o canto do olho lança um torpedo desdenhoso.
Corona, já bebericando seu destilado botulímico, desenha o mais encantador sorriso que sua mente contaminante pode simular.
– O que uma garota como você faz num lugar tão antisséptico como esse?
A Vacina, indiferente ao forçado layout facial, improvisa entredentes:
– Espero pelo Tétano e a Cólera, combinamos um ménage à trois.
Corona vibra, se inclina, semicerra os olhos e sussurra em meio ao hálito esverdeado:
– Ah, tesouro, isso é pouco excitante. Você não prefere um quatre?
A Vacina intui que ele nunca irá desistir, ela não vai escapar. Ele se espalha fácil, é perigosamente contagiante. A Vacina então propõe:
– Vou desmarcar com Tétano e Cólera, você vai adorar minhas irmãs gêmeas.
Ela usa o celular enquanto ele, animadaço, acaricia seu capsídio.
Bebem em silêncio, ao som de Meu Bem, Meu Mal, tocado por um solerte pianista.
Não demora, a porta abre e entram duas belezuras, sósias perfeitas da Vacina. As três se abraçam, cochicham, riem alto.
Encantado e já seduzido, Corona quer saber:
– Afinal, quem são vocês três?
– Eu sou a Dose, essa aqui é a Dosinha e ela ali é a Dosona.
Mais risadas, mais encantamento dele. Aí o trio mira Corona e em uníssono convida:
– Estamos sem sono… Quer dormir com a gente?
Tri a fim da noitada, Corona solta um eba! juvenil e segue as moças porta afora. Na rua, ao lembrar dos apelidos delas, tem um calafrio. Ele ainda não sabe que não é de frio.
E a Vacina, ao andar ao lado do insidioso, se sente tensa: talvez fosse melhor convocar logo sua quarta irmã.