OPINIÃO

A aspirina e a cloroquina

Por Moisés Mendes / Publicado em 25 de outubro de 2021

A aspirina e a cloroquina

Foto: Freepik

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Com ou sem recomendação médica, há muita gente tomando aspirina regularmente para evitar doenças circulatórias. É uma prática com mais de 40 anos.

Mas teria chegado a hora de reavaliar esse costume. Circula pela internet, em sites de jornalismo sério, e não em vídeos com mentiras, que a Força-Tarefa de Serviços Preventivos dos Estados Unidos recomenda a pessoas com mais de 60 anos que suspendam o uso da aspirina.

O aviso é o de que o risco de possíveis hemorragias pode ser maior do que os benefícios. Essa era uma suspeita já levantada por outros estudos, mas que passa a ser reafirmada, com ênfase no aumento dos danos.

A Força-Tarefa é um grupo respeitado de profissionais da saúde de todas as áreas, mantido pelo Departamento de Saúde e Serviços Humanos dos EUA, mas com autonomia e sem vínculos de submissão ao governo.

O que os médicos de todo mundo deverão fazer a partir do alerta de um organismo com alta reputação? É certo que já estejam repensando, em seus consultórios, em centros de saúde, clínicas e hospitais, o uso da aspirina como medicação preventiva.

É certo que há entre os médicos que recomendavam a aspirina, e agora irão advertir seus pacientes, muitos receitadores de cloroquina.

Sim, o médico que fica atento às novas informações e protege as pessoas que estão sob seus cuidados pode ser o mesmo que, apesar dos alertas, orienta as pessoas a tomarem o remédio milagroso do bolsonarismo.

Por que isso acontece? Esse é um dos dilemas do Brasil tomado por ações claramente vinculadas à extrema direita. Por que um médico atencioso e atualizado, que tem agora a tarefa de reavaliar a prescrição da aspirina a seus pacientes, não fez o mesmo em relação à cloroquina?

A cloroquina disseminou-se pelo país, especialmente em cidades do interior, como se fosse uma droga sujeita apenas a avaliações pessoais.

Com a proteção do Conselho Federal de Medicina, os médicos puderam receitar e concluir que, depois do uso da cloroquina, pessoas com suspeita de Covid-19 haviam sido salvas.

Cientistas do mundo todo já concluíram que não é bem assim, que a cloroquina não funciona nesses casos, mas muitos médicos continuaram dizendo o contrário. Que a cloroquina salvou a vida de alguém.

Esse é um dos fenômenos da pandemia e do bolsonarismo. Sabe-se quase tudo sobre o avanço da cloroquina. Sabemos que se disseminou a partir da articulação de um gabinete paralelo dentro do Ministério da Saúde e que expulsou da pasta o ministro Luiz Henrique Mandetta.

Sabe-se que Bolsonaro foi seu primeiro e mais importante garoto-propaganda, porque a cloroquina poderia, diz ele até agora, substituir a CoronaVac, identificada como a vacina de João Doria.

Sabe-se que os laboratórios ganharam muito dinheiro com a cloroquina. Sabemos que até o Exército foi mobilizado para que seu laboratório produzisse cloroquina, por imposição de Bolsonaro.

O Brasil todo sabe que a cloroquina foi usada em Manaus como experimento e “solução” para a falta de oxigênio e de vagas nos hospitais, quando milhares morreram sem ar e sem socorro.

A cloroquina foi o medicamento à mão dos donos e de alguns médicos da rede de clínicas Prevent Senior, para uso em escala industrial e mortal em pacientes idosos. Não há mais dúvida nenhuma sobre a ação criminosa da Prevent.

Mas isso não é suficiente para explicar a ação individual de cada médico que prescreveu cloroquina aos seus pacientes, em redes públicas ou privadas.

A formação das quadrilhas da cloroquina, estruturadas para ganhar dinheiro, não tem conexão com a maioria dos profissionais que aderiram ao milagre do bolsonarismo.

E essa é há muito tempo a grande questão da área médica. Que impulso, que interesses, que informações levaram médicos respeitados a insistirem, como insistem ainda hoje, a receitar um remédio que comprovadamente não previne contra a Covid e pode matar?

Há em muitas cidades gaúchos um ambiente de confronto que se repete em municípios de todo o Brasil. Os médicos estão divididos entre cloroquinistas e não-cloroquinistas. Há indícios de que os primeiros são maioria.

A cloroquina acionou o mais poderoso lobby por um medicamento no Brasil em todos os tempos. Mobilizou atravessadores, políticos, espertalhões e charlatões em torno de cifras bilionárias.

Mas pouco ou nada do que explica a adesão de pilantras, denunciados pela CPI do genocídio, é capaz de explicar também a postura do médico interiorano.

O profissional capaz de discernir entre o certo e o errado foi atraído para a adesão à cloroquina por ideologia? É certo que sim, em muitos casos.

Foi traído pela desinformação? É difícil, porque tudo o que se sabe sobre a cloroquina está em estudos publicados na internet, por jornais (que fazem uma cobertura elogiável) e sites especializados.

Por tudo isso, é preciso procurar entender o que aconteceu e ainda acontece. O profissional de uma cidade do interior, com vínculos com a comunidade, não é nem parecido com o dono da Prevent, que antecipava o que chamavam de “altas celestiais” a quem estaria morrendo.

O médico da cidadezinha, que conhece todo mundo, saiu receitando cloroquina sem medir os riscos do que fazia? Essa profissional cloroquinista agiu por soberba, certo que participaria de um feito milagroso?

Pesquisadores de saúde pública terão que se dedicar ao tema, mas sem muita demora. Temas de pesquisas precisam amadurecer, na maioria dos casos. Nesse, se o estudo demorar muito, as causas do fenômeno serão camufladas ou escamoteadas com o passar do tempo.

O médico que receitou cloroquina, e que não é necessariamente um sabotador das vacinas, contribuiu de qualquer forma com a pregação negacionista.

A cloroquina, que está na base do esquema bolsonarista de rejeição à ciência e à imunização, foi usada pelo governo como algo capaz de substituir a vacina.

Os médicos dedicados à difusão do remédio, mesmo que sem vínculos com as seitas bolsonaristas, prestaram serviços aos que, para atacar a vacina, defendiam imunidade de rebanho, fim das restrições e o não-uso da máscara.

As comunidades precisam entender o que levou esses médicos a participarem, mesmo que involuntariamente, de um sistema montado para não dar certo.

A cloroquina foi apenas parte de uma estrutura deliberada e macabra, já classificada por juristas e pela CPI como criminosa.

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