OPINIÃO

Boia da salvação

Por Fraga / Publicado em 17 de novembro de 2021

Ilustração: Rafael Sica

Ilustração: Rafael Sica

Quase ninguém gosta de comida de hospital. Eu não desgosto.

E só resolvi abordar essa disposição porque atualmente passo uma temporada num grande hospital no centro histórico. Com fome ou não, é onde faço várias refeições satisfatórias por dia.

Essa queda temporária pelo insosso nada tem de inexplicável. No meu caso, decorre do fato das papilas gustativas serem das poucas coisas sadias na minha carcaça. É a lei das compensações, que funciona à revelia do dissabor do prato. Até o pior creme compensa.

Como se chega ao hábito alimentar desprovido de gula, que dispensa sabores intensos e temperos fortes? Como nos acostumamos ao desinteressante? Só quem se interna sabe e pode entender.

Começa com um diagnóstico imperativo. Se você tem um açucareiro ou saleiro nas veias, quem paga essa conta é você, e a cobrança vem na culinária hospitalar.

Ao contrário dos restaurantes, os cardápios dum hospital são determinados pelas restrições alimentares. Em vez da volúpia do apetite, prevalece o “não pode isso, proibido aquilo”. Ou você se conforma ou morre de inanição, ou daquilo que já estava lhe matando de tanto engolir o que não devia.

Depois de se curvar à imposição nutricional, vem a passividade diante da refeição. E com ela, o malabarismo com 1 grama de sal sobre o prato com legumes no vapor, um disforme purê de batata e o guisadinho sem personalidade.

Ah, que habilidades insuspeitas a gente é capaz de desenvolver com pitadinhas de sal. Só o cálculo da distribuição perfeita do sachê de sal polvilhado na comida já torna você candidato ao Nobel de Matemática. Daí se inicia inesperada sedução: seu paladar sucumbe aos vestígios do sal, e você se indaga por que consumia salinas inteiras.

Depois de aprender a realizar o milagre da multiplicação do sódio, segue-se o improvável agrado com o descorado e o inodoro, até então estados inferiores da matéria orgânica. Então, a cada almoço ou jantar, você passa a admirar as artes da cozinheira hospitalar: de quantos modos se pode picar a cenoura? Até onde vai a ressurreição da carne? Sem arroz ou massa, como suprir carboidratos? Mistérios deliciosos.

A partir do imprevisível deleite que a privação do gostoso traz, se instala na boca um paradoxo sensorial – quanto menos estímulos prazerosos, maior o prazer ao comer.

E como tudo num hospital vira rotina, acaba que você se condiciona pelo ascetismo culinário. Tanto que, ao soar o sacolejar do carrinho das bandejas no corredor, a saliva pavloviana escorre. No final da internação, você já admite: esse hospital merecia indicação no Guia Michelin!

Mas o que mais me faz apreciar comida de hospital é a comparação óbvia: nenhum cemitério serve refeições.

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