OPINIÃO

Michele e os rinocerontes

Por Marcos Rolim / Publicado em 16 de novembro de 2021

Foto: Julian Mommert/ Divulgação

Foto: Julian Mommert/ Divulgação

Eugéne Ionescu, dramaturgo nascido na Romênia, mas criado na França, foi um dos grandes nomes, ao lado de Beckett e Genet, do chamado Teatro do Absurdo. Uma das suas peças chama-se O Rinoceronte (Rhinocéros, 1959), uma sátira ao nazismo, mas que pode ser compreendida, também, como uma crítica ao colaboracionismo, uma das páginas mais lamentáveis da história francesa.

O enredo se situa em uma cidade pacata surpreendida com a presença de um desafiador rinoceronte. O animal, tão deslocado de seu habitat natural, circula livremente, despertando a curiosidade dos residentes.

Na primeira cena, as pessoas dizem: “Oh! Um rinoceronte”, enquanto o bicho corre pelas ruas, fazendo um barulho infernal e levantando nuvens de poeira. Uma dona de casa diz: “E essa agora!”, e a garçonete exclama: “Essa é boa!”. Os comentários seguem e o rinoceronte já vai longe. Um dos personagens diz: “Deveríamos protestar junto às autoridades municipais! Afinal, para que servem as autoridades municipais?”.

A conversa prossegue em torno de banalidades até que um rinoceronte, em sentido contrário ao primeiro, passa em grande velocidade pela rua (seria o mesmo?). Novamente os “Oh! Um rinoceronte” são ouvidos, mas, agora, uma mulher chora pela morte de seu gatinho esmagado pelos cascos do animal. Segue um debate sobre se o rinoceronte que viram é do tipo africano ou asiático, se tem um corno ou dois.

Os residentes relativizam as aparições, dizendo coisas como: “Eles não atacam”, “Se os deixarmos em paz, eles irão nos ignorar”. O fato é que, paulatinamente, os moradores estão se transformando em rinocerontes. Depois que o processo se torna perceptível, se fala em uma doença, a “rinocerontite”. “Como é possível uma coisa destas, num país civilizado…?”, se questiona um dos residentes.

Bérenger, o herói da peça, é um lúcido homem do povo. Ele chama atenção para a circunstância de que, se o fenômeno tivesse ocorrido em um outro país, seria possível discutir calmamente sobre o assunto, organizar seminários, etc, mas eles estão “diante da realidade brutal dos fatos”.

“Lá estão eles de novo! Ah! não há nada a fazer, não consigo me habituar. Talvez seja errado, mas eles me preocupam a tal ponto que não consigo dormir”, diz. Já o personagem Dudard anuncia que se acostumou com os rinocerontes, não sem antes justificar: “Eu não digo que seja um bem, evidentemente. E não pense que tomo partido pelos rinocerontes”.

Michele Prado, autora de um estudo muito importante sobre a construção do discurso da extrema-direita (Tempestade Ideológica, Bolsonarismo, a alt-right e o populismo iliberal no Brasil – Ed. Lux, 2021, 286 p.), lembrou dessa peça para descrever o fenômeno da radicalização protofascista nas redes sociais que usa várias técnicas, entre elas a de mover a “Janela de Overton”.

O conceito denota a margem de aceitação das posições políticas pela opinião pública. No caso do bolsonarismo, a tática opera nas duas pontas: pela primeira, as posições divergentes são situadas como “comunistas” – incluindo aquelas de liberais e de lideranças conservadoras clássicas.

Assim, por exemplo, Angela Merkel é apresentada como uma “esquerdista” e não como a qualificada líder da União Democrata Cristã, um partido de centro-direita. Na outra ponta, autores e lideranças abertamente fascistas são apresentados como “conservadores”, como Jack Posobjec (trumpista apoiador de sites nazistas e que reproduziu a teoria conspiratória do Pizzagate), Richard Spencer (supremacista que saudava Trump com o grito “Heil, Trump!”) e Mike Cernovich (jornalista conhecido por suas posições misóginas).

Nesse caminho, a Janela se desloca para a extrema-direita, ampliando-se os limites para a aceitação do absurdo.

O livro de Michele Prado é uma produção independente que só pode ser adquirido pela Internet. Poucas coisas que li sobre os movimentos de extrema-direita no mundo e sobre o bolsonarismo, em particular, foram tão importantes quanto esse trabalho. Michele se define como “da direita liberal” e é alguém que frequentou, ao início das articulações da nova direita no Brasil, espaços onde o bolsonarismo seria criado.

Seu livro sintetiza, assim, dois movimentos: o espanto de quem esteve no “ovo da serpente” e percebeu o que as articulações na Internet estavam produzindo e a decisão de estudar o fenômeno e realizar a mais completa revisão teórica sobre o tema já feita até agora em língua portuguesa.

Michele percebeu os desafios do enfrentamento ao que denomina de “rinocerização” da política brasileira, coisa que ainda está longe de ser compreendida por muitos dos analistas e das referências políticas nacionais.

Ao final de seu trabalho, ela cita o estudo de Kyle e Mounk (2018), o qual identificou que líderes populistas têm quase cinco vezes mais probabilidades de se manterem em seus cargos por mais de 10 anos, sendo que apenas 34% deles entregam o poder por conta de uma derrota eleitoral, o que, se pensarmos na ferocidade dos rinocerontes por aqui, são dados ainda mais assustadores.

Marcos Rolim é jornalista, doutor em Sociologia. Escreve mensalmente para o jornal Extra Classe

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