OPINIÃO

A guerra do Brasil e a naturalização da barbárie

Por Marco Weissheimer / Publicado em 20 de dezembro de 2021

Arte: Bold Comunicação

Chacina no Salgueiro e balsas do garimpo ilegal no Rio Madeira: duas cenas recentes se somam à galeria da barbárie bolsonarista

Arte: Bold Comunicação

Quando estamos em meio a um turbilhão de acontecimentos, é difícil ter uma percepção clara sobre as suas implicações e sobre a direção na qual ele nos coloca. O Brasil, mesmo antes do início da pandemia, já vivia um cenário dessa natureza, a partir da eleição de um governo de extrema-direita, em uma aliança sinistra entre militares, agronegócio e sistema financeiro, entre outros setores. O discurso de violência, preconceito e discriminação, emulado pelo presidente eleito, já era claro e explícito desde a campanha eleitoral. Logo, não foi surpresa para ninguém. Os aliados e cúmplices de toda a violência e violação de direitos que se seguiriam ao início deste governo jamais poderão dizer que “não sabiam”. Sabiam, sabem e seguem justificando atos diários de barbárie e violência.

Em um artigo publicado em outubro de 2018 (A barbárie está autorizada. O horror saiu do armário), o antropólogo Luiz Eduardo Soares antecipou, em tom profético, o que estava por vir. Soares chama atenção para o simbolismo do gesto de dois homens brancos, os então candidatos a deputado federal Daniel Silveira e a deputado estadual Rodrigo Amorim; ao lado do candidato ao governo do Rio de Janeiro Wilson Witzel, que rasgaram uma placa de rua com o nome de Marielle Franco, vereadora do PSol assassinada na capital fluminense, morte cujos mandantes até hoje não foram identificados. Fizeram da placa, escreveu Soares, “uma lápide e da lápide partida o símbolo do esquecimento. Isso se chama profanação e promove a segunda morte de Marielle”.

O horror como método

Esse foi apenas um dos tantos sinais que indicavam o que estava por vir. Lembrando que “grande parte de nossas vidas é regida pelo que é invisível – emoções, afetos, expectativas, desejos, memórias, fantasias”, o antropólogo assinalou que, na política, não é diferente: “Por isso, não é preciso incluir no programa de governo referências a um plano de extermínio, não é preciso apresentar publicamente um programa genocida. Não é necessário exaltar a violência e o preconceito, ou incitar o ódio, explicitamente – ainda que isso tenha sido feito. O que põe em circulação a barbárie não está nos argumentos racionais da candidatura ou em suas propostas de políticas públicas. A mensagem já foi passada à sociedade. E a mensagem se resume a uma autorização. Autorização à barbárie. A morte foi convocada. A barbárie está autorizada. O horror saiu do armário”.

Passados mais de três anos, os atos de barbárie são tantos no Brasil que quase já se incorporaram à nossa rotina. O “quase” não se aplica às populações que são alvo diário desses crimes (homens, jovens e meninos negros, mulheres, jovens e meninas negras em sua maioria, moradores de periferia, povos indígenas, pequenos agricultores, população LGBT, estudantes, trabalhadores…a lista é extensa). A situação é tanto mais dramática, na medida em que esse caráter diário da barbárie provocou uma certa naturalização desse cenário. A “sociedade” brasileira (expressão que vai entre aspas pois precisa ser melhor descrita) está anestesiada pela violência, o que não diminui em nada o crime da cumplicidade para com o que está ocorrendo no Brasil.

No final de novembro deste ano, mais duas imagens se somaram à galeria da barbárie bolsonarista brasileira. A “descoberta” de dez mortos em um mangue dentro do Complexo do Salgueiro, no Rio de Janeiro, que, segundo a Polícia Militar, foram mortos em um confronto durante uma “operação de estabilização”. Os corpos apresentavam sinais de tortura e de execução. Segundo o programa Fantástico, da Rede Globo, os policiais do Batalhão de Operações Especiais (Bope) dispararam mais de 1.500 tiros na “operação de estabilização”. Justificando a ação policial, o governador daquele estado, Cláudio Castro, afirmou: “Coisa boa não estavam fazendo”.

A segunda cena foi a da invasão de centenas de balsas de garimpo ilegal Rio Madeira adentro, na Floresta Amazônica. A prática de garimpo ilegal na região, inclusive dentro de terras indígenas, não é uma novidade exatamente, mas ganhou força nos últimos dois anos com o enfraquecimento da fiscalização e com os discursos e as ações de apoio a essa atividade ilegal por parte do governo Bolsonaro.  São cenas da guerra em curso no Brasil, uma guerra contra o povo brasileiro, que está sendo atacado pelo exército bolsonarista e sua aliança macabra, que reúne militares, fazendeiros, pecuaristas, garimpeiros, banqueiros, parlamentares, prefeitos e governadores cúmplices dessa barbárie.

Marco Weissheimer é jornalista. Escreve mensalmente o Extra Classe.

Comentários