O passo a passo da destruição da educação brasileira
Foto: Foto Valter Campanato/Agência Brasil
Para além da ideologização e tentativas de censura, a edição do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) de 2021 representa mais uma intervenção autoritária do governo federal de negação do direito à educação para milhões de jovens de escolas públicas, principalmente jovens pobres, pardos e negros.
Esta política de que a “universidade deveria ser para poucos”, como defende o atual Ministro Ribeiro (MEC), foi desencadeada já em 2015 quando se questionou o aumento de investimentos em educação (Meta 20 do PNE 2014-2024); quando se atacou o financiamento estudantil (Fies, Prouni, Proies e outros); quando efetuaram cortes nos recursos para educação, ciência, tecnologia e cultura; quando se implantou uma reforma do novo ensino médio reintroduzindo a formação técnica e qualificação profissional para esses jovens pobres não sonharem, nem progredirem seus estudos no ensino superior.
Naturalmente que as falácias do presidente e do ministro da Educação sobre o Enem possuem, pelo menos, outras duas intenções: primeiro, desviar o foco da grave crise econômica (inflação alta, desemprego), social (aumento exponencial da pobreza e da fome) e política (entrega da gestão do governo ao centrão); e, em segundo lugar, camuflar a incapacidade do governo em apresentar e liderar um projeto de educação para os mais de 56 milhões de estudantes matriculados desde a educação infantil até a pós graduação em nosso país.
O Enem de 2021 é o mais desigual desde sua instituição
Este Enem não somente excluiu milhões de estudantes, como ampliou as desigualdades sociais, raciais, educacionais e tecnológicas, já agravadas pela pandemia em 2020 e 2021.
O problema começou já na inscrição, quando o MEC negou a isenção da taxa de R$ 85,00 para quem não justificou ausência em 2020, quando muitos estudantes estavam inseguros com a maior crise sanitária provocada pela covid 19. Após o Supremo Tribunal Federal (STF) autorizar inscrição, apenas 9% se reinscreveram. “Tem gente que se esforça o triplo do que eu, trabalha, cuida da casa, da família e ainda estuda. Merecia muito mais uma vaga na universidade. Infelizmente, não é uma competição igualitária”, desabafa a estudante Tabatha Sayuri
Este Enem, também, vai impactar negativamente no acesso ao ensino superior, especialmente em instituições comunitárias e privadas, que já enfrentam redução de matrículas em decorrência da pandemia dos últimos dois anos, configurando um cenário catastrófico para as instituições e para a manutenção do trabalho de professores e pesquisadores.
Interferências nos exames
Servidores de carreira do Instituto de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) pediram demissão de suas funções por divergências com a cúpula da Autarquia. Apontaram que um policial federal acessou o “ambiente seguro”, violando o sigilo das provas e, sentiram-se pressionados sobre perguntas com conteúdo que poderiam desagradar o governo de Bolsonaro.
Esses mesmos técnicos entregaram ao Tribunal de Contas da União (TCU) e à Controladoria-Geral da União (CGU) um dossiê com as denúncias e, alertaram que tais interferências afetam não somente o Enem, mas, também, os outros exames, como: Enade (Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes), o Revalida, o Re-saber, entre outros.
Em uma Carta vários ex-ministros de educação lamentaram tomarem “conhecimento de relatos de assédio e interferência política veiculados na mídia, decorrentes da atuação do quinto presidente do Instituto nos últimos três anos e sua equipe” e, que nos 85 anos do Inep, jamais viram “na instituição uma crise tão profunda, ainda mais às portas da realização do mais importante instrumento de acesso ao ensino superior, que é o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem)”.
Para o presidente da SBPC, Renato Janine, “há gente, ingênua ou de má fé, que reclama das cotas “raciais” e diz que deveriam ser “sociais”. Mas eles já são: 50% das vagas vão para escolas públicas. Dentro dessa metade é que há vagas raciais ou étnicas, no mesmo percentual da população de negros ou de indígenas que vivem no estado onde está a universidade em que você quer entrar”. Isso implica que haverá mais vagas, por exemplo, na Bahia e menos no Rio Grande do Sul, mais para indígenas na Amazônia que no Sudeste, porém, antes de tudo, que nenhum negro ou indígena terá direito a cotas se tiver cursado o ensino médio em escolas particulares.
O papel da educação e da ciência
A educação, a ciência e o conhecimento são determinantes na história de uma nação e na vida dos adolescentes e jovens, que, por sua vez, são fundamentais para a construção de sociedade mais justa e democráticas. Não precisamos de mais presídios para estes jovens brasileiros, mas, sim, de educação, de cultura, de ciência e de condições condignas de vida para esses jovens viverem seus projetos.
Cessar programas de expansão de instituições de ensino, fechar escolas, extinguir e reduzir o financiamento estudantil (Fies e Prouni), deixar de realizar concursos para professores, cortar bolsas do CNPq e Capes, contingenciar recursos para educação por mais 20 anos (EC 95/2016) e reduzir investimentos, revela uma opção política de produzir, intencionalmente, uma crise na educação. E, “a crise da educação no Brasil não é uma crise; é um projeto” das elites que governam este país, proferiu Darcy Ribeiro em pleno regime militar (1970).
O Enem foi instituído em 1998 com o objetivo de avaliar o desempenho escolar dos estudantes ao término da educação básica. Em 2009, foi aperfeiçoado e passou a ser utilizado como mecanismo de acesso à educação superior. Trata-se de um instrumento democrático, universal e transparente de acesso a uma formação acadêmica. Ele abre possibilidades para estudantes optarem e escolherem universidades que almejam, tanto no Brasil como em outros países que reconhecem o Enem como mecanismo de ingresso em suas instituições. A título de exemplo, só em Portugal, são mais de 50 universidades que o utilizam.
Essa credibilidade e legitimidade reconhecidas nacionalmente e internacionalmente precisam ser preservadas. Os estudantes, suas famílias e a sociedade exigem respeito e transparência, segurança e garantias de não ingerência ideológica e política do governo atual sobre o Enem e demais processos avaliativos no Brasil.
Sem investimento e atualização do banco de questões, combinado com a desconstrução do corpo técnico e o desmonte do Inep, o Enem de 2022 está sob risco de ser ainda mais excludente, elitista e conteudista.
Gabriel Grabowski é professor e pesquisador. Escreve mensalmente para o jornal Extra Classe.