OPINIÃO

Afeganistão, terra esquecida e faminta

Por Andrés Ferrari Haines e Debora Volker F. Avelino / Publicado em 16 de março de 2022

Foto: Andrew McConnell/ Acnur

“Estima-se que 95% dos afegãos não têm o suficiente para comer, e quase 9 milhões correm o risco de passar fome – incluindo 1 milhão de crianças”

Foto: Andrew McConnell/ Acnur

A Alta Comissária das Nações Unidas para os Direitos Humanos, Michelle Bachelet, acaba de alertar que questões humanitárias e econômicas no Afeganistão provavelmente vão causar mais mortes no país do que as próprias décadas de conflitos e guerras entre 2001 e 2021,  nas quais os Estados Unidos gastaram mais de US$ 2,2 trilhões.

Em janeiro, as Nações Unidas lançaram “o maior apelo por ajuda a um único país em sua história”. A organização pede mais de US$ 5 bilhões para o Afeganistão. Isso foi reforçado pela Diretora executiva da Unicef Catherine Russel, a qual relatou que 60% da população do país sofre “fome aguda”, constituindo “a maior crise humanitária do mundo.”

Estima-se que 95% dos afegãos não têm o suficiente para comer, e quase 9 milhões correm o risco de passar fome – incluindo 1 milhão de crianças. Para piorar, a situação se agravou após uma forte seca e ocorrência de baixas temperaturas, além de que as sanções contra o governo talibã impedem o auxílio ao país.

“As crianças estão morrendo congeladas ou de fome diante de nossos olhos; pais vendendo seus rins; mães vendendo seus bebês, tudo em uma tentativa desesperada de alimentar aqueles que ainda estão vivos” declarou dramaticamente o ex-primeiro-ministro do Reino Unido, Gordon Brown (2007-2010), sobre o país que chamou de “terra esquecida”.

Parem de matar de fome o Afeganistão!

Foto: S. Omer Sadaat/ Pnud

“Sob a liderança dos Estados Unidos, países ocidentais congelaram mais de US$ 9 bilhões do Afeganistão depositados no exterior, recursos que incluem auxílios internacionais à nação”

Foto: S. Omer Sadaat/ Pnud

A situação ganhou urgente dramaticidade com a abrupta saída dos países ocidentais do Afeganistão em agosto de 2021. Sob a liderança dos Estados Unidos, esses países congelaram mais de US$ 9 bilhões do Afeganistão depositados no exterior, recursos que incluem auxílios internacionais à nação. Biden argumentou que, para liberar esses fundos, precisa primeiro desenvolver mecanismos para evitar que sejam confiscados pelos talibãs.

A economia afegã está paralisada. Esses recursos representavam aproximadamente 45% do seu PIB e 75% dos gastos do governo afegão. Sem esse dinheiro, ficou impossível custear os funcionários do governo.

Em especial, foi afetado o setor de saúde. Milhares de unidades foram forçadas a fechar e, em consequência, a maioria dos afegãos perdeu o acesso aos cuidados de saúde. Algumas estimativas afirmam que três de cada quatro afegãos carece de atenção médica.

O argumento usado para congelar os recursos afegãos foi o de evitar fortalecer os talibãs, que retomaram o poder no país após a retirada dos ocidentais. Os Estados Unidos, por sua vez, não reconhecem a legitimidade do novo governo.

É por essa razão que pedidos de ajuda advindos das Nações Unidas e outros organismos ainda não foram atendidos. Como explicou em dezembro do ano passado o ex-embaixador dos EUA no Afeganistão, P. Michael McKinley, “qualquer assistência expandida ao Afeganistão corre o risco de ser acusada de consolidar o Talibã no poder e enfraquecer a capacidade para influenciar seu comportamento”.

Em dezembro, num artigo na Foreign Affairs, o especialista em Afeganistão do International Crisis Group, Graeme Smith exclamou: “parem de matar de fome ao Afeganistão”.

Um ato de crueldade

A situação ganhou dramaticidade, pois Biden decidiu recentemente que apenas metade dos US$ 7 bilhões afegãos, congelados nos EUA, será destinada ao país. No entanto, esses recursos apenas serão liberados após o governo dos Estados Unidos encontrarem mecanismos para que cheguem ao povo afegão, sem que eventualmente possam cair nas mãos dos talibãs. Pela situação desesperadora, teme-se que milhões morram antes da chegada desses recursos.

Contudo, o que causou ainda mais controvérsia foi a decisão de Biden referente ao destino dos outros US$ 3,5 bilhões, destinados a compensar famílias das vítimas do atentado de 11 de setembro de 2001, que entraram nas cortes de justiça dos Estados Unidos contra os talibãs e outros grupos terroristas.

Uma decisão judicial de 2012 responsabilizou os talibãs pela morte de seus parentes. Quando, em agosto, o grupo retomou o poder no Afeganistão, vários desses familiares reclamaram a legalidade da utilização desses recursos congelados pelos Estados Unidos, a fim de executar a compensação econômica da referida decisão judicial.

A ação de Biden é extremamente polêmica à medida em que justifica a apropriação do dinheiro com o fato de o Talibã ter tomado o poder. Torek Farhadi, ex-consultor financeiro da nação, declarou que “essas reservas pertencem ao povo afegão, não ao Talibã… A decisão de Biden é unilateral e não condiz com a lei internacional”. Graeme Smith, consultor do Grupo Internacional de Crise, afirma que essa decisão está castigando o país inteiro, “levando dezenas de milhões de afegãos à fome”.

Na capital do Afeganistão, Cabul, houve grandes manifestações contra a medida de Biden, nas quais foi expressada a ideia de que os afegãos não tiveram nada a ver com os ataques de 11 de setembro. Pelo contrário, demandaram que os Estados Unidos compensem financeiramente o país pelas centenas de milhares de afegãos mortos pela guerra e ocupação nas duas últimas décadas. Para um afegão, esta situação se trata de “um ato cruel e uma traição aos direitos do povo”.

O primeiro presidente do Afeganistão sob domínio estadunidense, Hamid Karzai, chamou a apropriação dos recursos de ato “injusto”, dizendo que os afegãos também foram vítimas do líder da Al-Qaeda, Osama bin Laden. O único vínculo que Bin Laden teve com os talibãs foi o de se negaram a entregá-lo aos Estados Unidos. Ilhan Omar, deputada estadunidense, condenou a decisão de Biden, declarando que não havia um “único afegão” no atentado de 11 de setembro.

Dentro do seu próprio país, Biden foi também duramente criticado. Kathey Kelly, do Truthout afirmou que “os EUA devem reparações ao Afeganistão” e não “levar mais fome”, enquanto Chris Gelardi, no The Nation, afirmou que “Biden se sente bem com a morte de civis em massa” e que a decisão “é um exemplo notável da capacidade de brutalidade do seu governo”.

“A América está de volta”?

Foto: Atlantic Council/ Divulgação

Kempe citou o russo Patrushev, oficial do Serviço Federal de Segurança (ex-KGB): “os ucranianos não deveriam confiar nos americanos, porque um dia eles o abandonariam, assim como fizeram no Afeganistão”

Foto: Atlantic Council/ Divulgação

A decisão é “imoral e desumana”, afirmou Jacob Silverman do The New Republic. “Biden assumiu o cargo prometendo restaurar a posição da América no mundo”, relembrou Silverman, concluindo que “roubar bilhões de dólares de algumas das pessoas mais pobres do mundo é uma maneira estranha de cumprir essa promessa”.

De fato, o movimento estadunidense causou um grande desconforto internacional. A China tratou a decisão do Biden diretamente como uma “conduta de bandidos” que exacerba o sofrimento dos afegãos causado pela ação dos Estados Unidos, em vez de assumir a “sua devida responsabilidade pelo Afeganistão para aliviar a crise humanitária no país”.

Escrevendo no momento após a repentina retirada do Afeganistão por parte de Washington, em agosto, Frederick Kempe, presidente do tradicional think-tank estadunidense Atlantic Council, alertou que “o desastre no Afeganistão ameaça a mensagem ‘A América está de volta’, de Biden aos aliados”. Para ele, o abandono da democracia afegã por parte do Biden pode significar um ponto de reflexão, onde aliados passem a duvidar de suas alianças com os EUA.

Kempe citou a Nikolai Patrushev, principal conselheiro de segurança nacional de Vladimir Putin, que afirmou: “a certa altura, a Casa Branca pode nem se lembrar de seus apoiadores em Kiev”. Isto pois, segundo Kempe, Patrushev declarou que os ucranianos não deveriam confiar nos americanos, porque um dia eles o abandonariam, assim como fizeram no Afeganistão.

Para Kempe, Biden deve deixar claro o significado da sua América está de volta “por meio de ações, não apenas retórica”.

Andrés Ferrari Haines é professor Associado do Departamento de Economia e Relações Internacionais da Faculdade de Ciências Econômicas da Ufrgs. Pesquisador do Nebrics.
Debora  Volker é graduanda em Letras da Universidade Federal Fluminense.

Comentários