O roteiro da Ucrânia: entre Geórgia e a guerra nuclear
Arte: Redes Sociais/Reproduções
Na segunda rodada de negociações de paz perto da fronteira entre Ucrânia e Bielorrússia, as delegações ucraniana e russa concordaram em organizar corredores humanitários para permitir a fuga de civis, embora não tenham havido progressos para encerrar o conflito.
Nos últimos dias, o presidente ucraniano Volodymyr Zelensky pediu para que a União Europeia aceitasse a entrada de seu país no bloco, recebendo apoio do grupo europeu. Os Estados Unidos e a Europa vêm apoiando abertamente Kiev, colorindo seus monumentos mais simbólicos com luzes das cores da bandeira ucraniana. Também foram abertas exceções para receber refugiados ucranianos e foi concedida ajuda econômica à nação.
Por sua vez, a Rússia vêm sendo excluída de eventos esportivos e culturais pelo mundo. Em alguns casos, a leitura de Dostoiévski foi proibida; até a participação de gatos russos foi banida de eventos. Mais importante, o Ocidente vem implementando fortes sanções contra Moscou.
Mas, no quesito militar, o apoio ocidental a Kiev tem sido menos decisivo e contundente. Apenas recentemente a Alemanha, abandonando uma prática estabelecida desde a Segunda Guerra Mundial, juntou-se aos EUA e ao Reino Unido, passando a fornecer armas à Ucrânia. Zelensky vinha solicitando esse tipo de apoio, denunciando o abandono do Ocidente após a entrada das tropas russas na Ucrânia.
A Otan, até agora, vem afirmando que se envolverá de forma mínima no conflito. Jens Stoltberg, secretário geral do bloco, declarou que a Otan “não faz parte deste imbróglio”, recusando o pedido ucraniano de estabelecer uma zona de exclusão aérea sobre a Rússia.
O presidente dos EUA, Joe Biden, afirmou que não enviará tropas para o país do Leste europeu – as que chegaram são apenas para proteger os membros da Otan. O Reino Unido também disse o mesmo, embora sua ministra das Relações Exteriores, Liz Truss, tenha encorajado seus compatriotas a se juntarem voluntariamente ao exército ucraniano, se assim o desejarem.
Caso a Ucrânia, a despeito de seus pedidos de auxílio, não receber uma ajuda militar mais significativa de seus aliados ocidentais, a evolução dessa guerra pode acabar sendo semelhante à da Geórgia em 2008.
Da desintegração soviética à guerra na Geórgia
Na década de 1990, a Rússia possuía como um dos objetivos de política externa ser aceita e reconhecida em condições de igualdade pelo Ocidente e suas instituições. Uma vez integrados ao modelo ocidental, o pensamento russo era o de que a existência da Otan não faria mais sentido.
No entanto, em 1994, o presidente russo Boris Ieltsin condenou as conversas ocidentais sobre uma expansão do agrupamento ocidental. A despeito de suas preocupações, várias partes do antigo “bloco soviético” – Polônia, Hungria e República Tcheca, em 1999; e Bulgária, Romênia e Eslováquia, em 2004 – foram acolhidas na Otan. No mesmo ano, apesar de uma declaração russa de que não toleraria forças militares da Otan no Báltico, Estônia, Letônia e Lituânia também ingressaram no bloco.
Em 2007, na 43ª Conferência Internacional de Segurança (Munique), Putin proferiu um histórico discurso, contrariando os contínuos movimentos de expansão do bloco. Defendendo a “instauração de uma ordem multipolar”, condenou a política unilateral dos EUA no mundo e a contínua ampliação do agrupamento militar europeu.
Em 2008, na Cúpula da Otan em Bucareste, Ucrânia e Geórgia foram convidadas a aderirem à aliança. Este convite era apoiado pelo presidente georgiano Mikhail Saakashvili, que chegou ao poder após a Revolução das Rosas, em 2004, derrubando o ex-líder soviético Eduard Shevardnadze.
Saakashvili alterou significativamente as políticas de seu país, ansiando a entrada de Tblisi na União Europeia. Do mesmo modo, o novo líder buscou integrar e influenciar de forma mais contundente as regiões da Ossétia do Sul e da Abkhazia, que permaneceram pró-Rússia após a desintegração soviética.
O conflito escalou quando a Geórgia realizou, em 2008, uma operação militar para controlar a capital da Ossétia do Sul, Tskhinvali. Moscou respondeu com ataques aéreos, enviando tropas para as regiões, que rapidamente assumiram o controle de Tskhinvali. O exército russo parou apenas a algumas dezenas de quilômetros da capital Tbilisi.
Logo após a vitória militar, as novas administrações pró-russas da Abkhazia e Ossétia do Sul enviaram pedidos oficiais para serem reconhecidas como estados soberanos, rapidamente chanceladas pelo parlamento russo. Moscou mantém ainda hoje uma forte presença militar nas regiões, movimento que o Ocidente condena como uma ocupação ilegítima.
Em uma longa análise, o especialista em defesa dos EUA, Michael Kofman, afirmou que, neste momento, “o que se perdeu no campo de batalha foi a crença idealista de que a Rússia finalmente aceitaria a estrutura de segurança que Washington havia estabelecido na Europa e o papel da Otan como principal agente de segurança na região”.
Em referência ao caso atual da Ucrânia, Wesley Culp afirma que “quinze anos depois de Munique, Putin é movido pelos mesmos medos”
A defesa da etnia e a assertividade russa…
Os roteiros do conflito georgiano em 2008 e o atual ucraniano aproximam-se ainda mais com o próprio ato e discurso russo sobre a autonomia das regiões de Lugansk e Donetsk, no dia 21 de fevereiro. Neste, Moscou repetiu no documento de reconhecimento das províncias ucranianas, quase que palavra por palavra, os tratados que havia assinado anteriormente com as regiões separatistas da Geórgia, em 2008.
Em ambos os casos, o Kremlin expressou temores de perdas de influência em seu exterior próximo. Da mesma forma, a presença de populações russas em ambas as regiões forneceu ao Kremlin um pretexto para intervir como protetor étnico tanto no Leste ucraniano quanto na Geórgia.
É o que Putin condenou como “genocídio do governo ucraniano”, sobre Lugansk e Donetsk. Este também é o mesmo discurso que replicou em um artigo intitulado “Sobre a unidade histórica entre russos e ucranianos”, publicado em 2021. Neste, o presidente russo condenou as medidas de Kiev de “forçar os russos na Ucrânia a negarem suas raízes étnicas”, equiparando “a assimilação forçada e agressiva” com “o uso de armas de destruição em massa” contra Moscou. No mesmo texto, Putin afirma que os países ocidentais estabeleceram e mantêm um “projeto anti-Rússia”, mas que Moscou “nunca permitirá que os territórios históricos e pessoas próximas sejam usados contra a Rússia”.
… e as brechas ocidentais
Assim, a Rússia parece explorar os mesmos métodos do conflito no Cáucaso na atual crise ucraniana. A persistente noção de insegurança nacional de que mais ex-repúblicas soviéticas se unam à Otan se encontra na origem de ambos os conflitos.
Por sua vez, David Faris aponta que políticos estadunidenses, em 2008, enviaram sinais para a Geórgia de que a apoiariam em caso de conflito, do mesmo modo como fizeram agora com a Ucrânia. Em ambos os casos não se observam – ao menos por enquanto –, um auxílio militar expressivo.
Para o autor, “as políticas dos EUA não contribuem em nada, enviando sinais contraditórios sobre seu nível de compromisso com a soberania ucraniana. Parte dessa ambiguidade era justamente para evitar provocar a Rússia, o que aconteceu de qualquer maneira”. Faris conclui que “a falta de clareza dos EUA sobre os compromissos leva os aliados a agir de forma imprudente na crença de que estão sob a proteção dos EUA, mesmo quando não estão, como aconteceu com a Geórgia em 2008”.
Em suas memórias, Robert M Gates, que serviu como secretário de Defesa nas administrações de George W. Bush (2001-2009) e Barack Obama (2009-2017), declarou que o “relacionamento do Ocidente com a Rússia foi mal-administrado após a desintegração soviética”. Em uma repreensão ao então presidente Bush filho, Gates afirmou que “tentar trazer a Geórgia e a Ucrânia para a Otan foi realmente um exagero (…), ignorando imprudentemente o que os russos consideravam seus próprios interesses nacionais vitais”.
Heather Conley, ex-funcionária do Departamento de Estado no governo de George W. Bush, disse que as medidas ocidentais, desde o conflito na Geórgia “vêm sendo cheias de brechas”. Para ela, os Estados Unidos e os países fazem sanções e lidam a situação de forma “simplesmente ineficaz”.
Apesar de todos os sinais ocidentais, Biden diz que “dificilmente a Ucrânia entrará na Otan no curto prazo”, a despeito dos pedidos de Zelensky. Putin, por outro lado, desde 2007 vem sendo claro quanto a seus posicionamentos e comportamentos.
Primeiro os georgianos e agora os ucranianos, ambos se sentem traídos pelos posicionamentos dos EUA e da Otan, de que não podem e não vão intervir militarmente no conflito. O presidente ucraniano reconheceu: “fomos deixados sozinhos (…) Quem está pronto para ir à guerra por nós? Sinceramente, não vejo ninguém”.
Os que estão prontos…
Para que não se repita o roteiro da Geórgia os países da Otan deveriam participar diretamente na guerra. Isto, considerando que a atual participação da Otan, por meio da provisão do armamentos, não é considerada pela Rússia como um envolvimento militar – ao menos por enquanto.
Por sua vez, as sanções econômicas que a Otan já implementou poderiam ser consideradas uma declaração de guerra. O ex-presidente e atual vice-presidente do Conselho de Segurança da Rússia, Dmitry Medvedev, alertou ao ministro das Finanças francês, Bruno Le Maire, que os países ocidentais estão instigando “uma guerra econômica e financeira total contra a Rússia”. “Cuidado com a língua, cavalheiros! E não se esqueçam que na história da humanidade, as guerras econômicas muitas vezes se tornaram reais”.
Conscientes desse risco, os mandatários ocidentais sistematicamente reiteram que não haverá um envolvimento maior em termos militares. O portal Político, a fim de ter uma voz oficial estadunidense a respeito, fez uma longa entrevista com Fiona Hill. Esta é definida como “uma das mais perspicazes especialistas em Rússia” nos EUA, já que estudou Putin por décadas. Para Hill, é provável que Putin use “todas as armas à sua disposição, incluindo as nucleares”.
No entanto, continuam as provocações à Rússia através de insinuações ocidentais de que seria possível um apoio maior do Ocidente à Ucrânia.
O secretário de Defesa Lloyd Austin deixou as “portas abertas da Otan para a Ucrânia e a Geórgia”. No Reino Unido, o parlamentar conservador David Davis afirmou que “não há opções de risco zero. Se não agirmos militarmente, a Otan ficará significativamente enfraquecida e devemos temer pela segurança de todos os estados que fazem fronteira com a Rússia.”
No meio da escalada, têm se divulgado nos países anglo-saxões a opção de estabelecer uma zona de exclusão aérea.
O parlamentar conservador, Tobias Ellwood, presidente do Comitê Seleto de Defesa e ex-ministro da Defesa, afirmou que “o mínimo que poderíamos fazer é oferecer uma zona de exclusão aérea”. Ele ainda reconhece que “é claro que isso nos colocará em confronto direto com a Rússia”. Também Sir Richard Barrons, comandante de Forças Conjuntas 2013-2016, no programa da BBC Newsnight, apoiou a medida, mesmo aceitando que “isso significa guerra com a Rússia”.
O general aposentado Philip Breedlove, que foi Comandante Supremo Aliado da Otan na Europa explicou que este movimento seria um ato de guerra, pois uma zona de exclusão aérea na parte Leste da Ucrânia, por exemplo” significaria que para voar com aeronaves da coalizão ou da Otan, teríamos que destruir todas as armas que pudessem disparar em nossas aeronaves. Isso significa bombardear radares inimigos e sistemas de mísseis do outro lado da fronteira. E você sabe o que isso significa, certo? Isso equivale a uma guerra.”
“O que você não entende?”
As contínuas manifestações ocidentais em favor da Ucrânia e contra a Rússia tem mobilizado suas populações. Zemlinsky, que foi colocado em um Editorial do Washington Post como “exemplo para o mundo por sua heroica resistência”, criticou a Otan como “fraca” e “insegura”. A declarações vieram depois que o bloco se recusou a estabelecer uma zona de exclusão aérea sobre a Ucrânia, enquanto seu país luta “na pior invasão desde a Segunda Guerra Mundial.”
A secretária de imprensa da Casa Branca, Jen Psaki, disse que Biden não determinará uma zona de exclusão aérea. Mas, nos Estados Unidos, 61% são a favor de “ser mais duro com Rússia” e 45% apoiam uma zona de exclusão aérea. Putin já alertou que a Rússia consideraria essas inciativas como uma declaração de guerra por parte da que a Otan.
Um dos apoiadores mais fervorosos do envolvimento direto da Otan na guerra é Michael McFaul, embaixador dos Estados Unidos na Rússia (2012 a 2014) e membro dos Estudos Internacionais na Universidade de Stanford.
Em seu Twitter, McFaul solicitou, com grande repercussão: “por favor, líderes da Otan, enviem todos os caças MIG que temos – 70 ao todo, 27 só na Polônia – para a Ucrânia agora. AGORA! E uma vez que Polônia, Bulgária, Romênia e Eslováquia enviem esses aviões, outros países da Otan devem enviar reforços aéreos para esses estados da linha de frente.”
Scott Ritter, ex-inspetor de armas das Nações Unidas (1991 a 1998), conhecido por denunciar, antes da invasão ao Iraque (2003), que este país não possuía capacidades significativas de armas de destruição em massa, respondeu à McFaul: “Que parte da guerra termonuclear você não entende?”.
Andrés Ferrari Haines é professor Associado do Departamento de Economia e Relações Internacionais da Faculdade de Ciências Econômicas da Ufrgs. Pesquisador do Nebrics.
Matheus Ibelli Bianco é mestrando no Programa de Pós-Graduação em Estudos Estratégicos Internacionais. Pesquisador pelo Nebrics/Ufrgs.