Foto: Reprodução da arte de Alceu Chierozin Nunes / Cia das Letras / Divulgação
Foto: Reprodução da arte de Alceu Chierozin Nunes / Cia das Letras / Divulgação
“O Avesso da Pele permite compreender como é ser negro no Brasil, de uma forma como poucas vezes se conseguiu fazer. Nesse particular, talvez não estejamos apenas diante de um ótimo romance, mas de uma obra de importância histórica”
Desde o seu lançamento pela Companhia das Letras, em 2020, o livro O Avesso da Pele, de Jeferson Tenório, já recebeu várias resenhas elogiosas, além do reconhecimento nos meios literários brasileiros, tendo sido o grande vencedor do Prêmio Jabuti de 2021.
Por que, então, retomar essa obra? Bem, os motivos são vários, mas o mais importante deles é que o tema do livro constitui um dos desafios centrais da civilização brasileira e, nesse sentido, podemos e devemos voltar a ele muitas vezes, para que mais pessoas descubram a prosa contundente e terna de Tenório, para que mais leitores possam ter o mesmo impacto de olhar o mundo pela perspectiva daqueles que são permanentemente deslocados do direito e do reconhecimento.
O Avesso da Pele permite compreender como é ser negro no Brasil, de uma forma como poucas vezes se conseguiu fazer. Nesse particular, talvez não estejamos apenas diante de um ótimo romance, mas de uma obra de importância histórica, notadamente se tivermos presente a realidade cultural do Rio Grande do Sul, em que as contribuições das culturas de matriz africana têm sido sistematicamente desconsideradas, quando não apagadas pelo discurso oficial.
O romance reconstitui a trajetória de uma família negra, até a morte de Henrique, professor universitário, em uma estúpida ação policial.
Nesse percurso, além das dificuldades vividas pelos personagens, temos o desvendamento de diferentes manifestações do racismo em situações do cotidiano, desde passagens que mostram o preconceito na linguagem, até a violência aberta, o que nos oferece um espelho dolorido onde é impossível não nos vermos.
Nós, os leitores brancos, estamos ali o tempo todo; em cada comentário racista que já presenciamos e calamos; em cada ausência de pessoas negras que não nos perturbou; em cada surpresa diante de uma pessoa negra ocupando uma posição de destaque; em cada sentimento de medo diante dos riscos reais ou imaginários nas ruas; em cada desconhecimento sobre ações afirmativas e em cada idiotice repetida sobre “racismo reverso” e outros mitos que transitam pelos labirintos da irreflexão.
O racismo, ao contrário do que se consolidou no senso comum, não pode ser compreendido como a expressão de ações ou valores assumidos por “pessoas racistas”. Muito além do mal que, eventualmente, pessoas racistas podem produzir, o racismo é uma estrutura da sociedade brasileira, tão operante quanto outras como a desigualdade social, por exemplo.
No centro do racismo estrutural, há a noção de “outridade”, como utilizada por Grada Kilomba, como materialização dos significados reprimidos da sociedade branca. Nesse processo, a pessoa negra é percebida como “a diferente”, como “a outra”, o que lhe assegura imediatamente o espaço da intrusa, como alguém “fora do lugar”.
O negro/a negra são o outro da branquitude, sendo, na verdade, definidos por ela, porque as pessoas só se percebem negras quando nomeadas como tal, o que pressupõe relações sociais em que há o poder dessa designação.
Chimamanda Ngozi Adichie, em Americanah, traduz essa noção pela protagonista do romance que só passou a se conceber como negra quando foi morar nos Estados Unidos. Antes disso, vivendo na Nigéria, era apenas uma pessoa como todas as demais.
Nós, os brancos, não nos concebemos como brancos, porque vivemos em uma sociedade em que nossa cor nos assegura privilégios, e esse é um processo que dispensa pessoas racistas, porque se nutre de uma estrutura social racista.
Jeferson Tenório constrói seu enredo com uma linguagem cristalina, com a qual vai mostrando a saga de pessoas negras sempre em movimento e que, mesmo sendo parte do universo da inclusão social, como integrantes das classes médias, seguem expostas ao preconceito e às possibilidades trágicas da violência.
O “avesso” diz respeito àquilo que o pai, Henrique, possui de substancialmente humano e, por extensão, àquilo que todas as pessoas negras – no lado inverso das características racializadas – são como pessoas.
Além da história, como ocorre com as grandes obras, o texto de Tenório agrega um potencial reflexivo autônomo a partir de determinadas “janelas”. Assim, por exemplo, na página 85, o narrador assinala: “Quando uma pessoa branca nos elogia, nunca saberemos se aquilo é sincero, ou apenas uma espécie de piedade, ou para não se sentir culpada, ou mesmo para não ser acusada de racismo.
Não sabemos avaliar nosso fracasso. Porque é tentador atribuir todas as nossas fraquezas e nossas falhas ao racismo”. Para, logo adiante, concluir: “E essa é a perversidade do racismo. Porque ele simplesmente te impede de visitar os próprios infernos”. Há outros momentos luminosos como esse, em que a história respira para que o autor possa trançar suas próprias ferramentas teóricas.
No momento em que o Brasil testemunha a reiteração da brutalidade racial e a naturalização do assassinato de corpos negros e indígenas, resultados cada vez mais decorrentes de uma necropolítica, o livro de Tenório adquire um significado ainda maior, como arte transformadora, expressão do casamento da beleza com a promessa emancipatória.
Marcos Rolim é jornalista, doutor em Sociologia. Escreve mensalmente para o jornal Extra Classe