Ucrânia: o Carnaval das nossas incertezas
Foto: Ministério da Defesa da Ucrânia
Erich Maria Remarque (1898-1970) foi um escritor alemão, autor do famoso Nada de novo no front, publicado em 1929. O enredo do livro se baseia em suas memórias nas trincheiras da Primeira Guerra Mundial. Além dessa, ele escreveu outras obras de conteúdo semelhante. Em 1933, seus livros foram queimados pelos nazistas, que o acusaram, além de ser descendente de judeus, de também fazer propaganda contra o nacionalismo alemão por meio de seus relatos de guerra. Em um dos comoventes trechos de Nada de novo no front, Remarque nos diz que:
Para nenhum homem a terra é tão importante quanto para um soldado. Quando ele se comprime contra ela demoradamente, com violência, quando nele enterra profundamente o rosto e os membros, na angústia mortal do fogo, ela é o seu único amigo, seu irmão, sua mãe. Nela ele abafa o seu pavor, e grita no seu silêncio e na sua segurança; ela o acolhe e o libera para mais dez segundos de corrida e de vida, e volta a abrigá-lo: às vezes, para sempre! Terra, terra, terra!
Não há nada de geopolítica neste trecho, nem mesmo menção a algum líder ou estado nacional. O que se pode perceber é uma individualidade que vai em direção a um instinto básico de sobrevivência, em busca de proteção na substância seminal que é a terra, que faz da semente fruto, mas que também sepulta o cadáver.
Obviamente esse tipo de raciocínio é esmagado quando colocado na perspectiva dos interesses geopolíticos de grandes nações. As vidas perdidas viram simples números, e a terra é comprimida dentro de um mapa subordinado a complexos interesses político-econômicos.
O que vislumbramos, mal as cortinas do mundo pós-covid começaram a ser abertas e a Rússia invadiu a Ucrânia, não foi, como muitos disseram, uma humanidade mais consciente e empática – como se a pandemia pudesse ter sido um momento catártico de autoaprendizado –, mas sim a possibilidade do surgimento de uma nova ordem mundial, desenhada a tanques de guerra e ameaça nuclear, tingida de sangue de civis e soldados, espetacularizada pelas mais diversas formas de mídias digitais.
O filósofo e economista Francis Fukuyama estava errado quando em 1989 previu o seu “fim da história”, tendo como base a expansão das democracias liberais e do capitalismo de mercado: o que estamos assistindo hoje, em uma medida ou outra, é a disrupção de velhas tensões político-ideológicas herdeiras da Guerra Fria que se perspectivaram por meio da expansão da Otan em direção aos países do Leste Europeu.
Dessa forma, em um conflito que é herdeiro do mundo do “nós” e “eles”, cujas ogivas nucleares ainda nos assombram como um vampiro que estava dormindo há séculos e que subitamente despertou (veja-se, por exemplo, a ameaça clara de Putin ao Ocidente: “Quem interferir levará a consequências nunca antes experimentadas na história”), não foi difícil que a guerra de narrativas assumisse uma visão bifrontal entre mocinhos e bandidos, bem ao estilo dos filmes hollywoodianos, como se Putin houvesse resolvido iniciar um conflito dessa escala simplesmente porque lhe deu na veneta.
Do outro lado, Volodymyr Zelensky vem recebendo por parte da imprensa tradicional o tratamento de um novo herói recém-descoberto, e poucos são os que se atrevem a criticá-lo, por exemplo, por sua insistência em conclamar a população civil a se transformar em escudos humanos segurando garrafas de coquetel molotov contra tanques de guerra russos.
Nesse sentido, Guga Chacra, conhecido comentarista político da Globo News, publicou, no dia 27 de fevereiro, no jornal O Globo, um artigo intitulado O heroico comediante contra o covarde ex-agente da KGB. Um dos trechos fala por si só:
Putin segue de terno em sua bolha superprotegida em Moscou. Já Zelensky está de camiseta, liderando heroicamente a Ucrânia. Os discursos de Putin são agressivos e arrogantes. Os de Zelensky são genuínos e transparentes. Putin pode ganhar a guerra. Mas virou pária mundial. Já Zelensky pode até ser derrubado. Mas passou a ser admirado por todo mundo.
No fim, o comediante é mais corajoso e heroico do que o covarde agente da KGB.
Putin é um criminoso. Governa a Rússia sem um sistema de contrapeso e pode permanecer no poder até 2036. Absolutamente nenhum tipo de motivo geopolítico justifica o fato de uma nação soberana ser invadida por outra.
Foto: Twitter/ Reprodução
No entanto, se há algo que essa guerra explicita é que gatilhos autoritários não são disparados da noite para o dia, mas sim são gestados em anos de presunção de que os Estados Unidos e a Europa são os únicos modelos possíveis para todos os estratos de realidade, sejam elas políticos, econômicas ou sociais.
E mais: que esses modelos precisam ser exportados em direção a todos os cantos do planeta, em nome de uma tal “liberdade” – seja ela o que for.
Porém, foram os Estados Unidos que em 2014 estiveram envolvidos na guerra híbrida responsável por derrubar o presidente ucraniano Viktor Yanukovych, que era alinhado à Rússia. Em seu lugar, grupos de extrema-direita – muitos abertamente nazifascistas – ascenderam ao poder.
No mesmo ano, a Rússia anexou a província ucraniana da Crimeia e apoiou grupos separatistas que ocupavam as regiões de Donetsk e Luhansk, que teriam sua independência reconhecia por Putin às vésperas do início da guerra.
É esse mesmo país, os Estados Unidos, que possui um Departamento de Justiça que criou uma força-tarefa com o objetivo de confiscar bens de bilionários russos supostamente corruptos.
Impossível, nesses casos, não lembrarmos de todas as vezes em que os norte-americanos invadiram de forma arbitrária nações soberanas e causaram a morte de milhares de civis.
Seria possível, por exemplo, imaginarmos a FIFA excluindo os Estados Unidos da Copa do Mundo de 2006 em virtude de sua invasão ao Iraque em busca de inexistentes armas químicas?
Enquanto o mundo assiste tenso à situação da Ucrânia, outros inúmeros conflitos se desenrolam, por exemplo, na Somália, Iêmen e Síria com um custo muito mais de vidas de civis.
Mas, como disse um comentarista da TV francesa BFMTV em relação à guerra na Ucrânia, “não falamos aqui de sírios que fogem de bombardeios sobre o regime sírio apoiado por Putin, falamos de europeus fugindo em carros que se parecem com os nossos para salvar suas vidas”.
No dia 1º de fevereiro, o jornal britânico Daily Mail fez uma reportagem destacando o fato de que milhares de pessoas estavam celebrando o Carnaval no Brasil “enquanto o resto do mundo protesta em solidariedade pela invasão da Ucrânia pela Rússia”.
O jornal estava, portanto, cobrando o fato de os brasileiros estarem se divertindo enquanto havia inúmeros protestos ao redor do mundo contra a guerra. No entanto, abaixo da superfície existe um empoderamento eurocêntrico cuja postura contrária obviamente nunca chegaria a se concretizar: quando, por acaso, a Europa lamentaria mazelas ocorridas na América Latina?
Na verdade, inúmeros eventos comemorativos também estavam acontecendo no continente europeu, como, por exemplo, a Fashion Week de Milão.
Talvez, inclusive, o Carnaval tenha sido, por meio de uma natural propensão ao excesso e à inversão, um ambiente bem representativo para que todas as nossas dúvidas em relação a essa terrível guerra tenham, de alguma forma, extravasado.
Ressaca
Na mistura dos destilados e fermentados talvez tenhamos dançado bêbados no nosso desconhecimento sobre os conflitos geopolíticos da região, um tanto quanto desconfiados de soluções fáceis, mas certos de que nenhum derramamento de sangue, de civil ou soldado, é justificável.
Por trás de nossas máscaras é possível que tenhamos tentado esconder o fato de que não conseguimos mais arregalar os olhos ante qualquer surpresa, pois o medo e o inesperado já fazem parte da nossa expectativa pelo futuro: não cremos mais nos homens poderosos.
Talvez tenhamos pensado que todo conflito se deu porque Putin não se entregou a uma boa folia e preferiu ficar encastelado atrás das espessas e geladas paredes do Kremlim, alisando suas bombas nucleares enquanto franzia o cenho para o resto do mundo, sem se importar com os civis ucranianos inocentes e tirando a liberdade de manifestação de seu próprio povo.
Nós, aqui do outro lado do mundo, tão longe de compreender as asperezas fonéticas do idioma russo ou ucraniano, tenhamos até mesmo pulado o Carnaval, irresponsáveis ao perigo ainda existente do vírus, com um certo conforto ao nos darmos conta, entre uma música e outra, entre uma bebida e outra, entre uma língua e outra, que o mundo pode até não nos respeitar, desde que não queira tocar uma bomba atômica sobre nossas cabeças e encerrar o nosso Carnaval em um instante.
Mas então veio a ressaca, e a guerra continuou. As incertezas não eram mais banhadas a álcool e diversão, mas sim a rotina que se impunha em um ano que de fato se iniciava. E falar em uma ameaça nuclear passou a ser um assunto indigesto com o qual nossa racionalidade é obrigada a, infelizmente, ter que lidar. Não há papel a se inverter. O Carnaval acabou e à nossa frente, neste tenso momento da história recente, só podemos apelar à razão – coisa que, infelizmente, parece não ser sinônimo de pacifismo e preservação de vidas humanas para os desencadeadores de conflitos.
Aqui, as palavras de Erich Maria Remarque soam fundo dentro de nós:
Não se consegue compreender como, em corpos tão dilacerados, ainda há rostos de seres humanos, em que a evolução da vida prossegue normalmente (…). Como é inútil tudo quanto já foi escrito, feito e pensado, quando não se conseguem evitar estas coisas! Devem ser mentiras e insignificâncias, quando a cultura de milhares de anos não conseguiu impedir que se derramassem esses rios de sangue (…).
Cristiano Fretta é professor de Português e Literatura.