A comunidade internacional e os 80% restantes da população mundial
Foto: Reprodução/Onu/Divulgação
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Desde a votação nas Nações Unidas sobre a resolução que condenou a invasão da Ucrânia pela Rússia (foto), a comunidade internacional e os países-membros da OTAN vêm afirmando que Moscou está isolado mundialmente, já que 141 dos 193 estados-membros apoiaram a resolução, contra 5 votos e 35 abstenções.
Em um editorial, o New York Times entende que “o presidente ucraniano Zelensky está mostrando ao mundo como resistir a Putin”.
Colunistas ocidentais reforçam essa visão. Max Boot argumentou que “a guerra de agressão de Putin mobilizou a maior indignação internacional desde o 11 de setembro”.
James Traub afirmou que “a crise na Ucrânia lembrou aos Estados Unidos e à Europa que eles têm uma missão no mundo”.
No entanto, um olhar mais atento revela que o suporte à proposta ocidental recebe consideravelmente menos apoio do que a votação da ONU sugere. O próprio presidente Joe Biden condenou os países que não votaram como os Estados Unidos, julgando e igualando a abstenção na votação como apoio à Rússia.
Nesse sentido, os países que votaram contra a resolução que condena a Rússia (Bielorrússia, Coreia do Norte, Eritreia e Síria) somam-se aos 35 que se abstiveram. Entre eles, estão Cuba, Nicarágua, Irã, Paquistão, China e Índia. Completa o grupo a Venezuela – que possui relações conflituosas com os EUA e é uma aliada da Rússia –, mas que não votou pois está suspensa por falta de pagamento à ONU. Entre os 54 países africanos – quase 28% do total dos votos –, metade dos que apoiaram a resolução são aliados de nações ocidentais, compartilhando estreitos laços militares com aquelas.
Já o Cazaquistão afirmou: “Não apoiamos nenhum lado. Isso não está em discussão.” Embora a Turquia tenha votado a favor da resolução da ONU, não sancionou a Rússia nem fechou seu espaço aéreo para aviões russos. Poucos no Sudeste Asiático condenaram a Rússia. Mianmar também reconheceu o movimento russo, cujo governo Putin apoiou o governo que emergiu do golpe de fevereiro de 2021 no país asiático. O Vietnã se absteve de apoiar a resolução da ONU, embora seja uma relação regional importante para os EUA. Laos, Indonésia e Malásia também buscaram valorizar os laços com a Rússia como o principal fornecedor de armas.
Na região do Golfo, apenas o Líbano condenou Moscou. Uma nota da Liga Árabe rejeitou os apelos dos EUA de contrariar o Kremlin; em vez disso, a Liga pediu uma solução diplomática para evitar a escalada. Do mesmo modo, solicitou privilegiar a situação humanitária, reconhecendo as “relações próximas” que os estados árabes compartilham com “ambas as partes da crise”.
A Arábia Saudita e os Emirados Árabes Unidos se recusaram a aliviar o aumento internacional dos preços do petróleo. De acordo com o Wall Street Journal, os líderes desses países rejeitaram telefonemas de Biden.
A abstenção da Índia também é significativa por sua recente aproximação com os Estados Unidos no QUAD; Biden expressou publicamente suas frustrações com tal posicionamento de Nova Déli na ONU.
Posicionamentos pró-russo
Outros países apoiaram a Rússia de forma mais enfática. A Sérvia afirmou que nunca se juntará à histeria anti-russa. O Irã culpou os EUA, declarando que Washington “viola todas as normas do direito internacional”. Da mesma forma, a Coreia do Norte argumentou que “a causa fundamental da crise na Ucrânia deriva da política hegemônica dos EUA”, enquanto a Síria denunciou que “a escalada entre Rússia e Ucrânia é proveniente dos Estados ocidentais, que não respeitam seus compromissos com a Rússia, conjuntura esta que vem se reproduzindo há décadas”.
O primeiro-ministro paquistanês Imran Khan, em resposta a uma carta publicada por 22 diplomatas baseados em Islamabad, solicitando apoio à resolução da ONU, questionou: “O que vocês pensam sobre nós? Que somos seus escravos… que o que eles disserem, faremos?” Ainda, uma delegação dos EUA foi à Venezuela buscando reconstruir a relação entre os dois países, mas Nicolás Maduro não foi receptivo da maneira que os estadunidenses esperavam.
De forma ainda mais significativa, apesar de a China ter se abstido na votação da ONU, claramente saiu em apoio à Rússia, declarando que as duas nações possuem uma amizade “sólida”. Ainda, culpou a OTAN por arrastar o planeta para uma nova Guerra Fria. Em fevereiro passado, a China afirmou que “apoia as propostas apresentadas pela Federação Russa de criar garantias de segurança, juridicamente vinculativas, na Europa”, em uma declaração conjunta dos líderes de Moscou e Pequim.
Oposição à Casa Branca
Neste referido comunicado, Rússia e China anunciam o início de uma “Nova Era” nas relações internacionais e denunciam “as tentativas de certos Estados de imporem seus próprios ‘padrões democráticos’ a outros países, de monopolizar o direito de avaliar o nível de cumprimento de critérios democráticos, de traçar linhas divisórias com base na ideologia, inclusive por meio do estabelecimento de blocos exclusivos e alianças de conveniência”.
Jerry Gray aponta que “a chamada comunidade internacional”, liderada pelos Estados Unidos contra a Rússia, “não inclui África, América Central e do Sul, Oriente Médio ou a maior parte da Ásia”. Gray destaca que, em termos de PIB, os países que aplicaram sanções contra Moscou representam cerca de 40,7 bilhões de dólares, contra 36 bilhões de dólares dos que não o fizeram. Mas essa comunidade de 42 países tem uma população próxima a 1,5 bilhão de pessoas, enquanto os 80% restantes vivem nos outros 151 países.
Apenas Canadá, Austrália, Japão, Bahamas, Taiwan, Coreia do Sul e Cingapura, países claramente alinhados com os Estados Unidos, aplicaram sanções junto com os europeus contra a Rússia. Israel surpreendeu com sua recusa em aderir, assim como México, Brasil e África do Sul, com o presidente deste último país, Cyril Ramaphosa, culpando a OTAN pela guerra.
Essa divisão já estava se manifestando em outras votações significativas na ONU em 2021. Em junho, 184 países votaram pelo fim do bloqueio econômico dos EUA sobre Cuba. Apenas os Estados Unidos e Israel votaram contra – uma resolução similar aprovada desde 1992. Os Estados Unidos e a Ucrânia votaram contra a resolução da ONU condenando o nazismo, o neonazismo e todas as formas de racismo, como fizeram nos anos anteriores, com a abstenção dos países europeus.
Um projeto sobre o direito à alimentação também foi aprovado com 180 votos a favor, com Israel e Estados Unidos contra, sem abstenções. Destaca-se que, em 2020, havia 2,4 bilhões de pessoas (quase um terço da humanidade) sem acesso a uma alimentação adequada, e que entre 720 milhões e 811 milhões passam fome.
Talvez a síntese mais clara da divisão global manifestada pela guerra na Ucrânia tenha vindo de um tweet do tenente-general Muhoozi Kainerugaba, filho do presidente de Uganda, Yoweri Museveni: “A maioria da humanidade (que não é branca) apoia a posição da Rússia sobre a Ucrânia”.
Andrés Ferrari Haines é professor Associado do Departamento de Economia e Relações Internacionais da Faculdade de Ciências Econômicas da Ufrgs. Pesquisador do Nebrics.
Matheus Ibelli Bianco é Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Estudos Estratégicos Internacionais. Pesquisador pelo Nebrics/Ufrgs.