O retorno à normalidade e os infernos que nos cercam
Imagem: Inferno, mosaico, 1250-70. Batistério de São João, Florença, Itália – atribuído a Coppo di Marcovaldo
Imagem: Inferno, mosaico, 1250-70. Batistério de São João, Florença, Itália – atribuído a Coppo di Marcovaldo
“O inferno dos vivos não é algo que será; se existe, é aquele que já está aqui, o inferno no qual vivemos todos os dias, que formamos estando juntos. Existem duas maneiras de não sofrer. A primeira é fácil para a maioria das pessoas: aceitar o inferno e tornar-se parte deste até o ponto de deixar de percebê-lo. A segunda é arriscada e exige atenção e aprendizagem contínuas: tentar saber reconhecer quem e o que, no meio do inferno, não é inferno, e preservá-lo, e abrir espaço.” (Italo Calvino – As Cidades Invisíveis)
O escritor italiano Italo Calvino, no final do seu livro As Cidades Invisíveis (1972), lançado do Brasil pela Companhia das Letras, diz que, mesmo nas piores condições, precisamos encontrar formas de existir e resistir ao sofrimento. Segundo ele, existem duas maneiras de não sofrer: a primeira é simplesmente aceitar o inferno e tornar-se parte dele, até o ponto de deixar de percebê-lo como tal. Essa seria a maneira mais simples e adotada pela maioria das pessoas. A segunda forma, acrescenta Calvino, é arriscada, exigindo atenção e aprendizagem contínuas. Ela consiste em tentar reconhecer quem e o que, no meio do inferno, não é inferno, para que possamos preservá-lo e abrir espaço para uma forma de vida que não seja dominada pelo sofrimento e pela alienação de tornar-se parte do inferno sem reconhecê-lo.
Nos últimos dois anos, vivemos no planeta e, particularmente, no Brasil, diferentes expressões do que poderia ser chamado de inferno, ou diferentes círculos de um mesmo inferno, para tomar emprestada a expressão de Dante Alighieri. A pandemia da covid-19 impactou de tal forma nossas vidas que, agora, quando as restrições de convívio são progressivamente levantadas, há um estranhamento que cerca o retorno à suposta normalidade. Estamos vivendo um retorno à normalidade ou vivenciando a primeira maneira de não sofrer, citada por Calvino: aceitando o inferno e tornando-se parte dele, até o ponto de deixar de percebê-lo como tal?
No caso do Brasil, tantas foram as violações de direitos, ataques à vida, à democracia, à verdade, à ciência e ao bom senso, patrocinadas pelo governo Bolsonaro e seus aliados na sociedade, que fica difícil sistematizá-las. Mais grave ainda, essas violações prosseguem e seus agentes ainda parecem possuir uma base social, capaz de tornar a disputa eleitoral de 2022 um ambiente extremamente perigoso. Para complexificar um pouco mais ainda esse cenário, estamos vivendo uma crise geopolítica internacional, em que a guerra voltou ao território europeu, envolvendo direta ou indiretamente as principais potências econômicas e militares do planeta, e uma crise climática que, não cansam de alertar os cientistas, já passou do ponto de não retorno. Ou seja, já começamos a sofrer os impactos do que fizemos e seguimos fazendo com o clima do planeta.
Em relação à crise climática, parece haver um problema de percepção análogo ao citado por Italo Calvino para descrever a escolha dos que escolhem simplesmente aceitar o inferno e tornar-se parte dele. Esse problema foi apontado pelo professor Luiz Marques, do Departamento de História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade de Campinas (Unicamp), que participou da 19ª edição da Festa da Colheita do Arroz Agroecológico, realizada no dia 18 de março, em Nova Santa Rita, na Região Metropolitana de Porto Alegre. Luiz Marques chamou atenção para a gravidade do problema da crise climática que a humanidade enfrenta hoje e para a dificuldade da maioria das pessoas em ter uma percepção correta sobre a dimensão e as implicações dessa crise.
Desde 1988, assinalou, quando foi criado, o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) já fez seis relatórios, cada um deles mostrando com mais clareza e certeza o que está acontecendo no sistema terra. “Esse aquecimento já ocorreu no nível de 1,2 grau Celsius. Parece que não é muito, né? A alteração de temperatura em um dia é maior do que isso, mas, em se tratando da temperatura média do planeta é muitíssimo. O problema não é exatamente essa elevação, pois a Terra já esteve mais quente do que isso, mas sim a rapidez com que essa mudança está ocorrendo porque o tempo é a variável mais importante na adaptação das espécies”, afirmou.
Essa aceleração, enfatizou ele, é muito enganosa porque, na nossa cabeça, nós reagimos pensando nisso tudo a partir da nossa experiência do passado. “A aceleração é traiçoeira justamente porque ela não reproduz o passado. Tudo vai ficando cada vez mais rápido. Então, essa é a questão principal que deve nos preocupar”, alertou.
Retornando ao início deste texto, pode ser interessante perguntar: Vamos reagir ao “pós-pandemia” a partir da nossa experiência do passado, do “pré-pandemia”, como se nada de muito importante tivesse acontecido em nossas vidas? Vamos seguir fazendo mais do mesmo, aceitando o inferno e nos tornando parte dele?