Foto: Vania Rech/ Divulgação
A expressão ouvida aqui e ali, nas redes e nas ruas, retrata além de uma saudade. É uma espécie de lamento pelo fim e por tudo o que significou a rádio, que começou a operar em 1983 em Porto Alegre, na frequência 94.9, mas que começou a ser gerada ainda na Bandeirantes FM 99.3 no ano de 1980, na Rua José Bonifácio (Rua do Brique), mesma época em que surgia o bar Ocidente na Osvaldo Aranha, o Escaler no mercado da Redenção, ou seja, no Bom Fim, o bairro marcado por uma intensa vida cultural e boêmia desde os anos 1970.
Neste cenário, surgia a rádio Bandeirantes, que depois virou Ipanema já no Morro Santo Antônio, no complexo da antiga Difusora. A história já está contada em algumas publicações, como no meu livro Prezados Ouvintes – Histórias do rádio e da Pop Rock (Artes & Ofícios, 2001), a obra da Katia Suman, Os diários secretos da rádio Ipanema FM (Besouro Box, 2019), entre outros textos acadêmicos.
A coisa toda surge em conversas com o conterrâneo Nilton Fernando em nosso sonho juvenil de fazer uma rádio “diferente” de tudo, quando eu ainda morava em Cachoeira do Sul e ele já atuava na rede Bandeirantes em São Paulo. Durante todos esses (mais de 40) anos que estou envolvido com o rádio FM em Porto Alegre, ouço sempre referências à importância da Ipanema na vida das pessoas que foram jovens ou nem tanto nos anos 1980 e 1990 especialmente.
Memórias da Ipanema
A Ipanema transformou, informou, formou musical, cultural, politicamente toda aquela geração. A força do que foi a Ipanema e todo esse trabalho até hoje aparecem em depoimentos de ouvintes a todos que integraram a equipe da rádio: “Vocês moldaram o meu gosto musical”, “Me deram uma consciência política”, “Foram os meus amigos através do rádio”. E isso não é pouco.
Um taxista que encontrei na saída do bar Ocidente, quase às seis da manhã, o sol já nascendo após mais uma festa Boys don’t cry, me conta que era ouvinte da Ipanema e, mais ainda, ouvinte da Bandeirantes FM, a rádio pré-Ipanema. Citou programas, entrevistas, momentos importantes das rádios. Paramos em frente ao meu prédio e seguimos conversando. Parecia um grande amigo que eu não via há muito tempo e não nos conhecíamos.
Em uma visita ao Nilton, junto com o Reinaldo Portanova do Relicário do Rock Gaúcho, recebemos dele várias fitas de rolo (se o prezado leitor não entendeu o que seja, pode conferir na internet). Ali está a gravação do dia em que entrevistei o Hermeto Pascoal na Ipanema FM. Ele e a banda toda saíram do estúdio tocando pelos corredores, tudo transmitido ao vivo; uma entrevista com o Fernando Gabeira que não foi gravada, e tantas outras; o abaixo-assinado, pedindo a reabertura do auditório Araújo Vianna fechado havia anos, que mobilizou a cidade inteira. Entregamos ao então prefeito Alceu Collares as pilhas de folhas com assinaturas, e o Araújo reabriu. Fizemos show de reabertura e tudo.
Programação diferente
Foto: Acervo Pessoal
Em uma fita-cassete dos meus guardados, a entrevista com o Ian Gillan, vocalista do Deep Purple, quando ele veio a Porto Alegre fazer um show do seu trabalho solo no Araújo Vianna. Conversamos um bom tempo num sábado à tarde rolando músicas dos discos e ele atendendo aos fãs que subiram o morro para se encontrar com o ídolo. A gravação do comício das Diretas Já no centro da cidade, que transmitimos ao vivo durante horas e cuja gravação o mencionado Reinaldo também conseguiu.
Que rádio faria essas coisas juntas, com conteúdos tão distintos e particulares e, além disso, tocando uma programação musical diferenciada e pautada pela novidade, pelo som clássico e valorizando o lado cultural das coisas?
É fácil de entender a pergunta, por que não surgiu outra rádio que conseguisse suprir essa falta. A falta de uma Mary Mezzari comentando cinema e rodando Prince. A falta de um Cagê rodando John Lee Hooker, a Katia e o Talk Radio, o Barão e as “véia” do rock. O Vitor Hugo e as notícias quentes da manhã, o Jimi Joe e as modernidades, a Nara Sarmento e o rock argentino, o Nilton e o “vamo nessa, moçada”, o Edu Santos rodando o Bob Marley de cada dia. É comum perguntarem se a Ipanema pode voltar.
Como diz a música do Sangue Sujo, banda gaúcha dos anos 1980, “Jesus Cristo vai voltar, aleluia”. Talvez surja um dia uma rádio que tenha o espírito da Ipanema. Um espírito libertário, aberto a todas as tendências musicais, posicionada em relação às questões ambientais, sociais e políticas. Que apoie as diversidades musicais e as diversidades em geral. Isso não dá pra desacreditar, porque seria o mesmo que não ter esperança.
Olhando o cenário cultural do país e do nosso estado, isso vai ficando apenas como um sonho. Sonhar não custa nada, como diz a canção do Kevin Johansen. Porque a Ipanema, aquela Ipanema, não voltará. “Que tempo bom, que não volta nunca mais” (Thaíde e Dj Hum). E já que estamos nas citações musicais, uma de Cazuza. “O tempo não pára”. Não vamos repetir o passado, mas que a Ipanema faz falta, ah isso faz.
Mauro Borba é jornalista e radialista. Integrou a equipe que criou a Rádio Ipanema FM em 1983.