OPINIÃO

A ciência como direito fundamental

Por José Luís Ferraro / Publicado em 15 de agosto de 2022

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Foto: Tima Miroshnichenko/ Pexels

Direito Fundamental: “O dinheiro público que financia a ciência enxerga na geração de conhecimento e na produção de saberes possibilidades de avanço científico e tecnológico que melhoram a vida de pessoas em diferentes áreas”

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Quando foi lançado no Brasil em 2018, o livro Como as democracias morrem, de Steven Levitsky e Daniel Ziblatt (Zahar/Cia. das Letras) causou certo furor, tendo impactado, principalmente, quem acredita em um modelo liberal de democracia como o único possível.

São os mesmos que minimizam e deslegitimam as lutas que se encontram no exterior de seu espectro político, e que se apropriam do domínio da linguagem – vide a banalização do significante liberdade comumente emanado em gozo coletivo – como estratégia de afirmação ideológica.

Assim, quaisquer pautas que surgem como afronta à estabilidade deste modelo tomado como “a” democracia, exclusivamente burguesa, são vistas como ameaças à liberdade – seja lá o que isso queira significar no interior desta tradição – e inseridas em um campo do discurso rotulado como populismo.

NESTA REPORTAGEM
O populismo é, assim, tal qual a liberdade, instrumentalizado por esse grupo. Compreendido por esses sujeitos a partir de uma conotação negativa, de viés demagógico, que lhe foi atribuída, supostamente, por desestabilizar a relação entre os poderes na ordem democrática representativa que estrutura os estados constitucionais burgueses.

Assim, se convencionou rotular de populista os governantes que subvertem a lógica dessas democracias, antes mesmo que estas possam ter questionada a sua efetividade enquanto democracias, ou será que ainda somos ingênuos a ponto de acreditarmos que a democracia representativa prosperou?

Semântica da resistência

Governantes que se opõem a práticas de austeridade fiscal e a existência de um teto de gastos para o financiamento de políticas sociais, por exemplo, são populistas sob esta lógica de gestão estatal que se impõe e que se pauta por uma racionalidade de uma economia que há muito deixou de ser política.

Disto depreende-se que, por extensão, no domínio da linguagem, ardilosamente, significantes como populismo, ideologia, hegemonia, política, crítica, reflexão, entre outros vocábulos, foram elevados ao status de más palavras. Perigosas, por sua vez.

Não por sua natureza, mas porque remetem a um campo semântico específico de resistência, sublevação, insurgência, conflito e dissidência. Poderiam ser apenas palavras da Língua Portuguesa, no entanto, perturbam a tranquilidade da norma de uma democracia liberal que tem o consenso como fetiche.

Afinal, os incautos realmente acreditam que as democracias são simplesmente vontade da maioria produzida como apaziguamento. Esta é apenas mais uma armadilha que esvazia o sentido da luta na participação política.

Por mais paradoxal que possa parecer, como nos ensinaram Ernesto Laclau, Chantal Mouffe e Jacques Rancière, a democracia só se materializa no dissenso, em uma relação agonística; enquanto houver luta, disputa, no campo político.

Ciência fundamental

E essa luta cotidiana inclui muitas e diferentes práticas, exercícios, experiências democráticas em distintos lugares: como fazer ciência nas universidades, por exemplo.

Afinal, o que é a ciência senão atividade diária do cientista em ambiente geralmente acadêmico, cujos resultados beneficiam a sociedade porque fundamentam e conferem um mínimo de dignidade por meio do bem-estar a diferentes modos de existência humanos?

Atividade que, nestes termos, poderia seguramente ter seu status elevado a direito fundamental, porque se encontra indissociável do debate político sendo, portanto, parte integrante da esfera democrática e podendo, assim, em um cenário ideal, gozar de uma maior proteção e segurança jurídica. Por que não?

Já existem requisitos preenchidos para tal proposição. Afinal, ao considerarmos a organização do sistema tributário de um país, prevê-se a devolução de parte do valor dos tributos na forma de promoção de direitos fundamentais à população.

É nesse sentido que as agências de fomento (Capes e CNPq), financiadas pelo governo, atuam.

O dinheiro público que financia a ciência no país seja em universidades públicas ou privadas, enxerga na geração de conhecimento e na produção de saberes, possibilidades de avanço científico e tecnológico que melhorem a vida de pessoas em diferentes áreas.

Isso sem falar no viés mercadológico de transferência de conhecimento e geração de patentes, o que gera mais arrecadação para o país – e que acaba por beneficiar uma série de negócios que se desenvolvem em parques tecnológicos também universitários.

É neste cenário que os programas de pós-graduação (PPGs) desempenham um papel fundamental: a condução das pesquisas por mestrandos, doutorandos e seus orientadores e que acaba por envolver a formação científica desde a base com bolsista de iniciação científica em nível de graduação – e em alguns casos com a modalidade júnior desta bolsa, que insere também alunos do ensino médio na investigação – é a chave para o melhoramento de uma qualidade de vida lato sensu em sociedade.

A proposição de tutelar a ciência como direito fundamental abre o espaço para que, de fato, possamos repensar os desdobramentos da racionalidade de um cenário obscurantista que passou a ser institucionalizado sem pudor.

As bolsas e o apagão nos cursos de PPG

O apagamento dos PPGs noticiado nas últimas semanas não pode e nem deve ser apenas explicado por uma suposta crise financeira causada pelo crescimento da concorrência (dita desleal) de cursos de graduação com mensalidades irrisórias na última década.

Também não se trata de sustentabilidade quando alguns PPGs fechados estão tendo que devolver um significativo número de bolsas enquanto outros estão sendo mantidos com poucas ou sem nenhuma bolsa por serem considerados apenas “mais estratégicos” devido à área em que estão inseridos. Essas, portanto, são apenas análises superficiais e ingênuas.

A crise é, antes de tudo, democrática cujos discursos permanecem atravessados por efeitos de relações históricas de saber-poder, tal qual evidenciado pelo filósofo francês Michel Foucault.

É preciso retornar, principalmente a Laclau e Mouffe, para entendermos que tanto na universidade (microcosmo da sociedade), quanto na vida real, também vigem diferentes populismos.

Populismo administrativo

Um deles, é o populismo administrativo – sempre austero – que recolhe enunciados de discursos que carregam consigo argumentos sobre gastos.

São os verdadeiros antolhos da gestão universitária que passa a não reconhecer o que é, de fato, investimento no – e, portanto, a razão de ser do – mundo acadêmico, fazendo com que universidades sejam geridas como negócios quaisquer.

Esquece-se a atividade fim destas instituições. Se há alguma demagogia no discurso populista, ela vem daí, dessa classe de populismos irreconhecíveis, negacionistas, e injustificáveis – que finge dar voz à comunidade (neste caso, acadêmica), mas que já definiu, de antemão, o seu futuro.

Ora, estamos a falar de gestão acadêmica. O debate aqui deve ter outro peso, em que pese o país também esteja em transe negacionista.

Estamos falando de ciência, investigação científica, de financiamento público, de pesquisa, de desenvolvimento, de difusão de conhecimento. E do principal: de formação humana.

O populismo administrativo deve ser combatido por outro, de ordem epistêmico-racional, de finalidade pedagógica; este sim, genuinamente acadêmico.

São nesses termos que se deve desenhar a relação agonística da luta pela permanência da pesquisa em um lugar de destaque nas universidades, talvez a partir do convite para (re)pensarmos o verdadeiro lugar da ciência em tempos de reafirmação democrática: a ciência como direito fundamental.

José Luís Ferraro é doutor em Educação, pesquisador e professor universitário. Bolsista Produtividade do CNPq.

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