Foto: Funai/ Divulgação
A notícia da morte do único habitante da terra indígena Tanaru, localizada no estado de Rondônia, o último sobrevivente de seu povo, é mais um capítulo da história de violência que é constitutiva da formação do Brasil como um país.
Essa violência está impregnada no nosso cotidiano e se espalhou de forma dramática pelos poros de todo o tecido social, a partir do momento em que foi eleito um presidente da República que, ao mesmo tempo, personifica essa história de violência e a venera, como se fosse uma verdadeira (falsa, na verdade) religião.
Conhecido como “o homem do buraco”, o último Tanaru ganhou esse apelido por seu hábito de construir buracos profundos. A sua presença foi filmada por uma equipe da Funai, em 2018, durante um encontro inesperado.
Segundo a definição da organização Survival Brasil, que integra um movimento global de proteção aos povos indígenas, a terra indígena Tanaru é “uma pequena ilha de floresta em um mar de vastas fazendas de gado, em uma das regiões mais violentas do Brasil”.
É uma ilha cercada pela ideologia (e sua correspondente prática) do “agronegócio é pop”, o qual se infiltrou nas estruturas de poder político institucional e nos grandes meios de comunicação do país. O agronegócio brasileiro é corresponsável, hoje, pelo avanço da destruição ambiental na Amazônia e pela violação de direitos de povos indígenas, além de sustentar um governo inimigo da democracia, dos direitos humanos, da diversidade e da liberdade de expressão.
O buraco de perversão e violência que marca o passado e presente do Brasil parece não ter fundo, e o país está, atualmente, mergulhado nele como se estivesse em uma queda livre.
Ao contrário do que ainda se apregoa na maioria dos livros escolares, a história do Brasil está profundamente marcada pela violência, pelo extermínio de povos inteiros e pela tortura institucionalizada.
Qual seria o impacto de, ao se ensinar a história do Brasil nas escolas, fossem relatados os assassinatos e as torturas cometidos contra milhões de indígenas, negros escravizados, camponeses e trabalhadores pobres? Hoje, é claro, um professor ou uma professora de História que desejasse fazer isso possivelmente perderia o emprego.
Em seu livro O Povo Brasileiro, Darcy Ribeiro nos conta que, em 1500, os portugueses chegaram em uma terra que abrigava cerca de 1 milhão de índios, quase a mesma população de Portugal na época. As décadas que se seguiram a essa chegada foram um período de violência, morte e extermínio.
Os povos que aqui resistiram à chegada do invasor foram, progressivamente, massacrados e escravizados. Sobre essa confluência de escravidões, violências e extermínios, e como ela se tornou constitutiva da nossa história e da sociedade que acabou resultando dela, Darcy Ribeiro escreveu:
“Todos nós, brasileiros, somos carne da carne daqueles pretos e índios supliciados. Todos nós brasileiros somos, por igual, a mão possessa que os supliciou. A doçura mais terna e a crueldade mais atroz aqui se conjugaram para fazer de nós a gente sentida e sofrida que somos e a gente insensível e brutal, que também somos”.
Há uma confluência de violências e massacres que são fundadores do Brasil como nação, e essas marcas de brutalidade e crueldade seguem presentes até hoje, não como uma característica biológica, mas como comportamento social reproduzido e estimulado pela impunidade (e pelos atuais governantes do país).
Essa é a verdadeira impunidade que segue reinando no Brasil, sendo atualizada e legitimada institucionalmente a cada geração. Esse processo de legitimação começa desde o topo da cadeia jurídica, desde a Corte Suprema, que segue mantendo os torturadores ao abrigo da Lei da Anistia e assiste, passivamente, ao alastramento da barbárie pelo país.
A morte do “índio do buraco” nos mostra, mais uma vez, que não haverá solução aceitável para os problemas políticos, econômicos e sociais brasileiros se não tirarmos as vendas dos olhos, se não traçarmos os mapas que ligam nosso passado e nosso presente e se não tivermos a coragem de olhar para a gênese da crueldade e a brutalidade que seguem presentes na sociedade e no Estado brasileiro.
Marco Weissheimer é jornalista. Escreve mensalmente o Extra Classe.