Imagem: Detalhe de Narciso, de Michelangelo Caravaggio (1594-1596)/ Domínio público
Espelhos são objetos fascinantes. Neles vemos o reflexo do que somos – não exatamente o que somos, mas nossa virtualização.
Uma imagem refletida, por vezes distorcida, mas que, em alguma medida, nos permite especular (do latim, speculum) elementos que podem ter algo a dizer sobre nós.
Em psicanálise, de Freud a Lacan, o espelho é utilizado tanto como a alegoria que anima o mito da construção da subjetividade narcísica, quanto para explicar o momento em que, ainda na primeira infância, a criança passa a perceber a integração de seu próprio corpo, respectivamente.
Na alegoria freudiana, a água da fonte servia de espelho para a autocontemplação de Narciso, fazendo com que fosse capturado pela sua própria beleza enquanto saciava sua sede – cumprindo assim a maldição de Nêmesis, deusa da vingança.
Já na teorização lacaniana, ao deparar-se com os espelhos (a partir de aproximadamente seis meses de vida), as crianças começam a perceber que também possuem uma identidade. Então, passam a reconhecer sua própria imagem; mesmo que inicialmente possam pensar que se trate de outra criança. A partir deste momento, segundo Lacan, seriam capazes de buscar referências em uma alteridade que não apenas o adulto cuidador, mas que corresponde a sua própria imagem refletida como o “outro”.
O fato é que, ao longo da vida, espelhos são objetos que nos reavivam memórias e, portanto, também poderiam causar perturbações ao nosso eu. A partir do momento em que nos deparamos com nossa imagem refletida, nos indagamos sobre quem nos tornamos: o que fizemos de nós mesmos?
Nem sempre é uma tarefa fácil buscar esta resposta diante da experiência do espelho que, para muitos, é marcada por notas de afecções nem sempre positivas, lembranças de maus encontros.
Afinal, nossa imagem também fala. Ela fala de nós e nem sempre suportamos ou estamos preparados para ouvir o que o outro de nós tem a dizer sobre nós mesmos.
No próximo dia 30, data do segundo turno da eleição presidencial – e para governador em alguns estados do país –, o eleitor brasileiro necessitará se olhar no espelho.
Neste caso em específico, o espelho será um pouco diferente: ele estará convertido em urna. É ali que a população apta a exercer seu direito ao voto verá a sua imagem refletida. Uma imagem que representa não apenas um projeto de país, mas considerando a experiência brasileira dos últimos anos, aquilo que estará em jogo enquanto compreensão semiótica, trata de um modelo civilizatório que passou da hora de ser pautado por uma projeto de unidade, não mais de segregação.
Nestes termos, nestes dias que antecedem a eleição, é preciso utilizar a estratégia do espelho como instrumento de confronto ideológico-argumentativo como tentativa de furar a bolha de um eleitorado não apenas reacionário ou tacanho, mas desumano.
É neste sentido que o espelho é a tábua de salvação da democracia brasileira, enquanto surge como estratégia pacífica de tentar fazer o outro lado enxergar seu comportamento atroz ao mesmo tempo que abre o espaço para a inscrição de alguma humanidade que desarme a subjetividade dessa cruzada de ódio – afinal, a experiência do olhar do outro, do rosto do outro, da alteridade, é tomada como uma experiência ética, uma epifania no sentido levinasiano (Emmanuel Levinas, filósofo).
Assim, é preciso colocar os bolsonaristas diante do espelho, lugar onde eles nunca quiseram estar porque, longe do espelho, é onde deixamos de nos enxergar; é o lugar onde podemos criar nossas próprias referências além do que realmente poderíamos observar; onde podemos viver a ilusão de nossas próprias verdades construídas – que, na verdade, não passam de convenientes e confortáveis mentiras. Só longe do espelho que prosperam as fake news.
Patriotismo de araque
Nestes últimos quatro anos, houve quem acreditasse nas mais diversas e abjetas mentiras. Na luta do bem contra o mal que forjou a pior das subjetividades: o brasileiro médio que acredita existir um cidadão de bem, que se informa em grupos de Whatts App e Telegram e que acredita em um patriotismo servil construído a partir de valores bélicos, armamentistas, meritocráticos, eugênicos, racistas, punitivistas, aporofóbicos, gentrificadores, sexistas, homofóbicos e misóginos.
Um patriotismo construído sobre a violência gratuita, o ódio sobre o diferente e à diferença – ou alguém se esqueceu das políticas educacionais segregadoras, nada inclusivas, pelo contrário, totalmente excludentes, que tentaram ser colocadas em ação no governo Bolsonaro?
Os últimos acontecimentos no santuário em Aparecida, no último dia 12, são o exemplo de que o Brasil necessita ser colocado diante do espelho. O comportamento dos “cidadãos de bem”, defensores da “família tradicional brasileira” e dos “bons costumes”, que profanaram o santuário não deveria causar espanto. Não agora. Foram, pelo menos, quatro anos agindo desta forma em todas as esferas em que tal ideologia foi abertamente permitida e não combatida – inclusive em instituições de ensino.
O Brasil viveu quatro anos de obscurantismo institucionalizado. Não foi por falta de aviso. Foi por falta de punição. Assim como nos processos conduzidos a partir dos trabalhos das comissões da verdade que apuraram os abusos durante a ditadura no país. Ali, tivessem os torturadores sido punidos, o país não teria mergulhado nesse retrocesso. Há nexo causal: a ditadura tratada como cadáver insepulto no canto da sala sempre foi o sintoma que nunca se deixou curar. O retorno do sintoma era inevitável.
Em que pese com algum atraso, os eventos de Aparecida ajudam a colocar a barbárie dos falsos patriotas, diante do espelho. Houve quem, desde então, ao presenciar o descontrole do fenômeno de massa – a agressão gratuita à fé com a profanação do sagrado – experimentasse o desconforto da transformação que só a experiência do espelho é capaz de operar.
Destes, houve quem decidisse converter seus votos, porque diante do espelho sentiram vergonha – saíram do transe e se viram obrigados a buscar outra referência: pela vida, não mais pela morte; pela democracia, não mais pelo estado de exceção.
Portanto, não há dúvida. O Brasil que deseja derrotar Bolsonaro e o bolsonarismo deve começar a fazê-lo entendendo a necessidade de se olhar no espelho. Não como Narciso que investe em si toda sua libido (autoerotismo narcísico) e esquece da alteridade, mas como a criança que olha para urna como o espelho.
Como alguém que pretende buscar no projeto político de um candidato – espera-se que inserido em um campo democrático –, referências para si, de um ideal de país no qual deseja viver. Trata-se de estabelecer uma relação no campo das identificações positivas, das afecções positivas, dos bons encontros, da potência dos agenciamentos positivos no sentido spinozano do termo (Baruch Spinoza, filósofo).
Para tanto, deverá considerar uma história que honre o movimento das Diretas já!, da luta histórica pela redemocratização, o texto da Constituição Federal cidadã de 1988 e que respeite a soberania das instituições – buscando nestes marcos especulares as referências para refundação de um país onde o povo seja valorizado e respeitado (e não mais a pátria, elemento de moralismo, captura e apropriação simbólica); mas principalmente tenha garantidas sua liberdade religiosa e diversidade familiar, para nos livrarmos em definitivo de quaisquer assombrações fundamentalistas e/ou flertes com slogans e ideologias nazifascistas. Um povo soberano, razão de ser de seus representantes e por eles convertido em verdadeiro espelho de suas lutas políticas.
José Luís Ferraro é doutor em Educação, pesquisador e professor universitário. Bolsista Produtividade do CNPq.