Sobre a Redenção e nosso complexo de vira-lata
Foto: Ricardo Stricher/ PMPA
É natural que se tente racionalizar o passado. E, ao visualizarmos com distanciamento os tempos idos, também é possível notarmos que houve parâmetros relativamente estáveis em outras épocas, como o tipo de vestimenta, estilo musical, uso de gírias, comportamentos – e, claro, ideias.
Aqui utilizo o vocábulo “ideias” no sentido mais amplo possível, como um conjunto de valores e convicções que norteia uma visão de mundo.
E é justamente essa visão de mundo a responsável por modular, em grande medida, não só os atos individuais, mas sobretudo as políticas públicas nos mais diversos estratos administrativos.
Também podemos chamar isso de ideologia.
É dessa forma que, ao olharmos com racionalidade para a Porto Alegre dos anos 1990 e início dos anos 2000, não resta dúvida de que nessa época a política pública da cidade respirou ares mais progressistas e democráticos ou, dito de outra forma, menos caretas.
É claro que sempre há o risco de se cair na armadilha romântica que a memorialística reserva aos saudosistas e dessa forma esquecermos que, sim, havia violência, pobreza, injustiça, desigualdade social há 30 anos; é inegável, porém, que uma cidade que teve o Orçamento Participativo como política orçamentária e sediou o Fórum Social Mundial já foi administrada sob a égide de ideologias muito mais participativas do que a atual.
Espaços públicos, gestão privada
No dia 2 de setembro, a Prefeitura de Porto Alegre apresentou um cronograma de concessão para a iniciativa privada de gestão da Redenção, Parque Marinha e diversos outros trechos da orla do Guaíba, por um período de 30 anos.
Os editais estão serão divulgados em 2023. Para se ter uma ideia do que está em jogo, estão previstos R$ 105 milhões em investimentos somente para a Redenção e a orla do Lami, com a possibilidade da construção de um estacionamento subterrâneo com 577 vagas debaixo do auditório Araújo Vianna, no Parque Farroupilha.
Em novembro deve haver audiências públicas na Câmara de Vereadores. É importante salientar que concessão não é privatização. Privatização é a venda de titularidade de algo estatal; já a concessão é a transferência de uma execução, normalmente por um prazo estipulado. No entanto, apesar das diferenças legais, nos dois casos há a iniciativa privada como gestor principal de atividades que antes pertenciam ao Estado. E isso, claro, tem consequências.
A Redenção é um espaço vital na construção do imaginário e da identidade de Porto Alegre. Ainda no final do século 18, a imensa área, que ainda não tinha arborização, era conhecida como “Várzea do Portão”, em referência ao antigo portão de entrada da capital, localizado onde hoje é a Praça Conde de Porto Alegre.
A várzea era utilizada como local de concentração de carreteiros que abasteciam a cidade com seus produtos e era conhecida como uma região muito alagadiça. Em 1884, o nome do local foi alterado para “Campos da Redenção”, em comemoração à abolição da escravatura em Porto Alegre, mas durante muito tempo também foi conhecido como “Várzea da Redenção”.
Percebendo o potencial urbanístico da área, em 1889 José Montaury mandou abrir alamedas ajardinadas pelo seu interior. O formato do ajardinamento atual começou a ser construído, porém, só em 1927 e a Exposição do Centenário Farroupilha, em 1935, marcou os novos tempos paisagísticos para a Redenção.
O local sempre foi, portanto, um espaço popular e, nos últimos anos, tem ganhado cada vez mais protagonismo como palco de manifestações de cunho democrático. A sua história também é a história de Porto Alegre e das ideologias que nortearam os intendentes e prefeitos e suas máquinas administrativas.
Complexo de vira-lata
Existe no Brasil, em praticamente todos os setores de nossa sociedade, uma espécie de fetichismo pela administração privada quando comparada à pública.
É como se nada que provenha do Estado ou que dele faça parte contenha competência. Ou pior: acredita-se que um dos males do Brasil é justamente o tamanho de sua máquina pública e que sua finalidade é pura e simplesmente a corrupção.
Como consequência disso, o Estado, ao invés de ser visto como um ente administrativo essencial às sociedades humanas, passa a ser compreendido como um entrave à liberdade – seja lá o que ela signifique – e consequentemente ao empreendedorismo meritocrático, que é visto como o único capaz de resolver as mazelas sociais ao mesmo tempo que reconhece o valor das iniciativas individuais e coletivas.
Ignora-se, assim, não só o fato de que a finalidade da inciativa privada é a geração de lucro, mas também que o próprio Estado é um elemento fundamental na constituição das identidades – ou seria possível pensarmos a Inglaterra sem o parlamentarismo ou o Brasil sem Congresso?
A verdade é que essa crença na inoperância do Estado é um sintoma do quão colonizada nossa sociedade é, na medida em que sua noção de progresso é alicerçada na idealização do explorador aventureiro em contraste com aqueles que “mamam nas tetas do Estado”.
Como consequência, desenvolve-se um imenso complexo de vira-lata em que se idealiza a iniciativa privada em seus aspectos gerenciais e éticos. Impossível pensarmos em algo mais perfeito para a elite econômica brasileira do que a crença na demonização do Estado. E essa é, em larga medida, a ideologia da atual gestão da Prefeitura.
A concessão da Redenção à iniciativa privada pode acarretar mudanças que levarão a alterações importantes no espaço físico do local, mudando de forma definitiva a relação que Porto Alegre tem com um dos seus mais belos parques.
Identidade
Certamente o capital não enxerga a Redenção como uma ampla área verde frequentada por porto-alegrenses dos mais variados estratos sociais, mas sim a vê como um território repleto de possibilidades para obtenção de lucro.
Na verdade, a concessão traz implícita a ideia de que a Prefeitura abre mão de gerenciar seus próprios espaços públicos e consequentemente não se apega à conservação da identidade de Porto Alegre.
A iniciativa privada, quando parceira do poder público, deve, acima do lucro, estar subordinada aos interesses da população e a suas demandas democráticas. Não é lícito que o capital utilize a estrutura de uma cidade com um único objetivo de gerar dinheiro e reverta apenas parte desses dividendos a melhorias urbanas.
Portanto, devemos ficar atentos aos próximos passos da concessão dos parques de Porto Alegre, cientes de que os interesses econômicos sempre vêm vestidos de boas ideias e, sobretudo, vigilantes para que a identidade de nossa cidade não se perca.
Cristiano Fretta é professor de Português e Literatura.