OPINIÃO

Na educação, governo de Lula deve enfrentar negacionismos e retomar políticas públicas

Por Gabriel Grabowski / Publicado em 3 de novembro de 2022

Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil

“Os ataques são de natureza material e simbólica, vêm se intensificando especialmente a partir da eleição de Bolsonaro e consistem em propagação de informações falsas, negacionismos, corte de verbas, intervenção na nomeação de reitores, bem como destruição da carreira docente

Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil

Todos que trabalhamos com a educação e a ciência nos reconhecemos na máxima de Paulo Freire proferida na obra da Pedagogia da Esperança de 1992: “Não sou esperançoso por pura teimosia mas por imperativo existencial e histórico. A esperança é necessidade ontológica”.

Ter esperança, sempre e enquanto vivermos, é essencial para todos os seres humanos, particularmente aos jovens, que sonham com uma vida digna e feliz. Sem esperança, não haverá o amanhã com mudanças.

A educação, como a ciência e a cultura, no governo Bolsonaro (2019-2022), foram profundamente impactadas pelo negacionismo e por um pensamento fascista estruturado conscientemente e intencionalmente, com apoio e/ou conivência de milhões cidadãos brasileiros.

Mentiras e distorções sistemáticas foram assistidas e aplaudidas pelos cúmplices. Apostou-se na ignorância, incentivou-se a negação do livre exercício de pensar e, atacou covardemente a ciência, a autonomia intelectual e política dos docentes e estudantes.

Entre a promessa falaciosa inicial que seria um governo “sem viés ideológico” e que o “Brasil voltaria a ser um país livre das amarras ideológicas”, a gestão federal, especialmente a gestão atabalhoada de cinco ministros no MEC, já é a mais ideológica da história da educação brasileira.

Esse posicionamento anti-intelectualista, contra a ciência e contra a cultura nacional é típico de governos autoritários que chegam ao poder por vias populistas, mas se sentem ameaçados pela liberdade de pensamento, especialmente a liberdade de imprensa e a liberdade de cátedra.

O professor e historiador Luiz Antônio Cunha, um dos maiores especialistas em história da educação brasileira, em 2016 já identificava um movimento que pretendia conter os processos de secularização da cultura e de laicidade do Estado no Brasil.

Esse processo nega o presente que vivemos e compreende o futuro como ameaçador, desejando, portanto, voltar ao passado com a intenção de regenerar a moral da sociedade.

Segundo o historiador, esse movimento de retrocesso, assumia feições mais ou menos institucionalizadas em projetos e tem sido acionado por seis vetores: o ensino religioso nas escolas públicas, o combate à “ideologia de gênero”, o programa escola sem partido, a educação moral e cívica, a militarização das escolas públicas e a educação domiciliar, constituindo um “Projeto Reacionário de Educação”.

Pensamento fascista

Esse projeto educacional colocado em marcha nos últimos quatro anos insere-se num projeto mais amplo de poder sob orientação de um pensamento e de uma política fascista.

Conforme Jason Stanley elucida na obra Como funciona o fascismo: a política “nós” e “eles”, a política fascista inclui muitas estratégias diferentes: o passado mítico, a propaganda, o anti-intelectualismo, a irrealidade, a hierarquia, a vitimização constante, a lei e ordem, a ansiedade sexual, apelos à noção de pátria e desarticulação da união e do bem-estar público.

Embora a defesa de certos elementos seja legítima e, às vezes, justificada, há momentos na história em que esses elementos se reúnem num único partido ou movimento político, e esses momentos são perigosos.

Nos Estados Unidos, os políticos republicanos ainda utilizam essas estratégias com cada vez mais frequência.

Sua crescente tendência a se envolver nesse tipo de política deve obrigar os conservadores honestos a refletir, adverte Stanley.

Os perigos da política fascista vêm da maneira específica como ela desumaniza segmentos da população.

Ao excluir esses grupos, limita a capacidade de empatia entre outros cidadãos, levando à justificação do tratamento desumano, da repressão da liberdade, da prisão em massa e da expulsão, até, em casos extremos, o extermínio generalizado.

O sintoma mais marcante da política fascista é a divisão.

Destina-se a dividir uma população em “nós” e “eles”.

Muitos tipos de movimentos políticos envolvem tal divisão.

Para fazer uma descrição da política fascista é necessário descrever a maneira muito específica pela qual a política fascista distingue “nós” de “eles”, apelando para distinções étnicas, religiosas ou raciais, e usando essa divisão para moldar a ideologia. E, em última análise, a política.

Todo o mecanismo da política fascista trabalha para criar ou solidificar essa distinção por meio de várias estratégias, entre as quais, a promoção de diversos negacionismos.

Negacionismos

Na obra Dicionário dos Negacionismos no Brasil, organizado por José Szwako e José Luiz Ratton, especialistas de todas as áreas – da ciência, da política, do direito, da história – apresentam uma reflexão interdisciplinar e sistemática sobre o fenômeno do negacionismo na perspectiva paradoxal e o propõem, como desafio estratégico a ser enfrentado por todos os campos das ciências, da cultura, da educação, da cidadania e da democracia.

Dicionário básico dos negacionismos

Abordaremos, na sequência, a título de ilustração, os negacionismos ligados à educação: do anti-intelctualismo, da universidade, do Escola Sem Partido e do Antigênero, entre outros. No dicionário são abordados mais de uma centena deles.

O anti-intelctualismo, além de uma expressão da política fascista, pode ser compreendido como uma atitude de aversão ou um sentimento de hostilidade à comunidade universitária e ao estilo intelectual de vida nutrido em espaços de formação acadêmica e cultural.

São basicamente três lógicas que permeiam o sentimento hostil face a intelectuais e ao pensamento reflexivo: a lógica do irracionalismo, do instrumentalismo e do populismo, que se apresenta como “antielitista”.

No Brasil possui relação com o período de 21 anos de ditadura e tende a misturar continuidades e rupturas com relação a essa história pretérita.

Enquanto as universidades públicas brasileiras são responsáveis por 95% da produção científica brasileira publicada em bases internacionais, segundo estudos realizados pela Clarivate Analytics, elas foram alvo prioritário do negacionismo que reivindica novas fontes de autoridade intelectual.

Os ataques são de natureza material e simbólica, vêm se intensificando especialmente a partir da eleição de Bolsonaro e consistem em propagação de informações falsas, corte de verbas, intervenção na nomeação de reitores, bem como destruição da carreira docente.

As notícias falsas propagadas pelos seus ministros da educação e a redução de R$ 7,8 bilhões do orçamento da pesquisa em 2015 para R$ 4,5 bilhões na última década, são algumas das evidências.

O escola sem partido (ESP) é um contramovimento social de caráter conservador-cristão fundado em 2004 com o objetivo de atuar contra o que chama de “doutrinação político-ideológica” nas escolas.

Na verdade, trata-se de uma reação a um conjunto de direitos conquistados por movimentos sociais e representantes políticos, em luta pela garantia e ampliação de direitos humanos, nas últimas décadas.

Na escola, o movimento ESP, combate discussões e reflexões sobre temas como evolucionismo, as desigualdades, a pluralidade religiosa e a educação sexual e ignora o fato de que o Brasil possui altíssimas taxas de gravidez precoce, não planejada, que leva adolescentes ao abandono escolar.

Já o movimento político antigênero é aquele que acusa a teoria do gênero – como os feminismos e movimentos LGBTQI+ –, de constituírem uma “teoria de gênero”.

Gênero é um termo conceitual muito utilizado nas ciências humanas na última década do século 20 que se esforçou em desnaturalizar as relações sociais e as desigualdades.

Esse movimento contra o que chamam de “ideologia de gênero” é, no caso brasileiro, a expressão do aumento da participação de lideranças evangélicas e católicos conservadores na esfera da política e no movimento escola sem partido, voltando-se contra o ambiente escolar e a educação.

Advertia Paulo Freire: “não existe educação neutra, toda neutralidade afirmada é uma opção escondida”.

Um projeto, uma proposta, uma intenção ou ideia torna-se ideológica quando é ocultada, camuflada, não explicitada, escondida nas entrelinhas, introjetada no inconsciente coletivo.

Cabe aos processos educativos críticos, científicos, filosóficos e culturais promoverem e exercitarem o pensar livre e a conscientização individual e coletiva. Quando a escola emancipa, os conservadores reagem atacando-a.

Portanto, a partir de janeiro de 2023, a retomada de políticas educacionais estruturais que viabilizem o direito à educação de todas crianças, adolescentes, jovens e adultos, cidadãos brasileiros, com liberdade de opção e pensamento é uma necessidade sócio-histórica e política inadiável, com ampla participação da sociedade brasileira, com sua pluralidade e diversidade.

Retomadas das políticas públicas   

Há imensa expectativa, esperança e necessidade que o novo governo restaure, a partir de janeiro de 2023, várias políticas educacionais estruturais de Estado – não de governo.

Essas políticas devem abranger todas as áreas, escutando e legitimando as iniciativas pela participação da sociedade, em regime de colaboração com os entes federados, instituindo um  Sistema Nacional de Educação e reafirmando um projeto de nação autônomo, justo e ambientalmente sustentável.

Entidades educacionais e científicas, de reconhecimento nacional e internacional tem analisado e sistematizado, importantes sínteses que apontam a necessidade de algumas revisões e retomada de políticas (entre tantas outras) que devem considerar:

– Respeito da Constituição Federal de 1988, da Justiça Social e da Democracia e contra os desmontes das políticas sociais e educacionais feitas principalmente por meio de medidas econômicas que acirram ainda mais as desigualdades no país;

– Retomada e cumprimento integral do Plano Nacional de Educação (Lei nº 13.005/2014) e dos Planos Estaduais e Municipais de Educação em vigência;

– Revogação da Emenda Constitucional 95/2016, do Teto de Gastos, com a retomada do investimento público adequado em políticas sociais e ambientais;

– Recomposição do orçamento da educação, da ciência e da cultura, bem como ampliação dos recursos da assistência técnica e financeira da União na educação básica, com fortalecimento dos programas universais e retomada de critérios e processos transparentes na alocação dos recursos e serviços da assistência voluntária;

– Plena regulamentação e implementação do novo e permanente Fundo de Desenvolvimento e Manutenção da Educação Básica e Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb);

– Financiamento e Assistência Estudantil para os jovens do ensino médio, educação profissional, graduação e pós-graduação;

– Revisão e rediscussão da BNCC e revogação da reforma do novo ensino médio que está em implementação sem participação e escuta dos jovens e das comunidades escolares e desencadeada em plena pandemia no período de 2020-2023;

– Implementação de uma Política Nacional de Educação Ambiental na perspectiva da transição ecológica, sustentabilidade socioambiental e do enfrentamento das mudanças climáticas e do racismo ambiental;

– Retomadas do Fóruns Permanentes de Educação, das Conferências Setoriais e Fóruns de Formação Inicial e Continuada de Professores;

– Escuta dos estudantes e das Juventudes;

– Respeito e valorização da docência, dos pesquisadores e das escolas enquanto espaços públicos das comunidades.

Enfim, muitos desafios à vista que deverão ser sabiamente negociados, retomados e implementados com ampla participação e colaboração do conjunto da sociedade brasileira.

A história demonstra que nações somente superaram crises estruturais quando investiram maciçamente em educação, ciência, tecnologia, cultura e, consequentemente, prosperam na economia, em inovação, e retomaram o caminho do desenvolvimento.

Quem sabe faz a hora, não espera acontecer. Esperançar é agir e participar das transformações necessárias! negacionismos negacionismos negacionismos negacionismos negacionismos negacionismos negacionismos negacionismos negacionismos

Gabriel Grabowski é professor e pesquisador. Escreve mensalmente para o jornal Extra Classe.

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