OPINIÃO

Sobre a guerra econômica entre o G7 e a Rússia

Por José Luís Fiori / Publicado em 9 de novembro de 2022

Foto: Agência de Imprensa do Governo de Israel/Agência Anadolu

Em outubro de 2021, Putin rejeitou uma oferta de mediação da guerra entre a Rússia e a Ucrânia feita pelo primeiro-ministro israelense, Naftali Bennett. Já estaria se movimentando em direção a uma aliança com potências asiáticas? “A aproximação financeira e comercial com a Ásia tende a aumentar o poder de resistência russo e criar dificuldades para a Europa atender sua demanda energética dependente da Rússia

Foto: Agência de Imprensa do Governo de Israel/Agência Anadolu

“A história da Rússia moderna começa no século 16, após dois séculos da invasão e dominação mongol, e transforma-se num movimento contínuo de reconquista e expansão defensiva…Desde então, o relógio político russo se sintonizou com a Europa e suas guerras, e seu desenvolvimento econômico esteve a serviço de uma estratégia militar de expansão defensiva de fronteiras cada vez mais extensas e vulneráveis” (L.Fiori, História, estratégia e desenvolvimento, Boitempo, 2014, p. 80)

Como resposta à inciativa militar da Rússia na Ucrânia, iniciada em 24 de fevereiro de 2022, os países do G7 e seus aliados da União europeia e do sudeste asiático desencadearam uma guerra econômica contra a Rússia.

O uso de “sanções econômicas”, sobretudo comerciais, contra países “inimigos”, foi um recurso de poder utilizado desde tempos imemoriais, sobretudo em situações de guerra.

Mas nunca havia se assistido um ataque desta magnitude, incluindo sanções e bloqueios comerciais e financeiros de todo tipo, incluindo o congelamento e apropriação de ativos e reservas russas aplicadas em moedas e títulos dos países que comandaram este verdadeiro ataque “atômico’ à economia russa.

Esse ataque econômico sem precedentes na história das relações entre sociedades e economias capitalistas teve dois objetivos principais: o primeiro, era causar uma asfixia instantânea da economia russa que paralisasse sua capacidade de seguir financiando sua guerra no território da Ucrânia.

Seria uma forma indireta de entrar na guerra, sem precisar envolver suas tropas nem correr o risco de sofrer ataques militares por parte da Rússia; e o segundo objetivo, de mais longo prazo, era aleijar a economia russa de forma permanente, não apenas para atingir a sua eficácia no território da Ucrânia e em Donbass, neste momento, mas para impedir que a Rússia pudesse repetir qualquer outra inciativa militar pelos próximos anos ou décadas.

Ataque monetário e boiconte comercial

Essa guerra econômica lançada pelos países do G7 e do G10 sobre a economia russa, teve duas áreas básicas de ataque. Um é o ataque monetário financeiro, o principal instrumento para asfixiar de forma rápida a Rússia, excluindo-a do sistema monetário financeiro internacional, isto é, impedindo que a Rússia possa fazer qualquer mínima transferência transnacional em qualquer moeda e pra que falar no dólar.

Somando-se a essa medida, os países ocidentes estabeleceram o clássico boicote comercial, impedindo a compra das exportações russas de todo tipo, incluindo os bens energéticos.

A ideia foi promover uma exclusão da Rússia do sistema internacional de pagamentos, inicialmente, por meio da retirada do país do sistema Swift criado na década de 1970 para realizar transações financeiras transfronteiras no mundo inteiro, em qualquer moeda.

Esse sistema, situado em Bruxelas, permite a troca de milhões de mensagens e a realização de transações diárias, envolvendo uma quantidade gigantesca de bancos, de instituições financeiras do mundo inteiro, cuja administração é feita pelo banco central belga com o suporte de mais dez bancos centrais dos países europeus e dos EUA.

Dessa forma, é possível dizer que a guerra econômica foi promovida pelos países que compõem o conselho do Swift, a saber: Estados Unidos, Grã- Bretanha, Canadá, Alemanha, França, Itália, Países Baixos, Suécia, Suíça, Japão. Ou seja, a guerra econômica foi patrocinada pelo núcleo duro econômico do capitalismo ocidental.

Além do sistema Swift, o sistema financeiro está ancorado em um outro negócio denominado Chips, que efetua pagamentos internacionais em dólar por meio de 43 instituições financeiras, todas com sede nos Estados Unidos.

Depois do início da guerra ao terrorismo no começo deste século, houve uma espécie de integração entre o Swift e o Chips, uma vez que os Estados Unidos obrigaram o Swift a abrir toda a informação para as instituições americanas, que antes era privada.

Com efeito, os Estados Unidos passaram a ter acesso a toda e qualquer informação financeira sobre qualquer movimento financeiro no mundo, seja através do Swift, seja através dos Chips, que já pertence ao seu domínio jurídico pelo qual as 43 instituições que estão envolvidas.

Qualquer desrespeito às sanções impostas pelos Estados Unidos, também são punidas pela legislação americana. São instituições que ocuparam um lugar absolutamente central na economia internacional, particularmente neste século, com o início da guerra ao terrorismo no exercício bipolar do poder americano, depois do fim da Guerra Fria.

Dessa forma, os Estados Unidos assumiram o controle completo da informação, até dos eventuais dólares que possam ser transferidos em qualquer lugar do mundo. Por isso, as sanções americanas no sistema financeiro internacional são capazes de atingir todos os atores que realizam transações na economia global.

Com efeito, a eliminação de um país desse sistema impossibilita a realização de transações financeiras de qualquer natureza, ou seja, ocorre uma espécie de paralisação dos seus negócios internacionais.

Mesmo que esses países tentem driblar as sanções, dada a profundidade do Swift e do Chips, o departamento de justiça americano é capaz de identificar essas tentativas num curto espaço de tempo.

Em outras palavras, a integração desses dois sistemas criou uma máquina absolutamente gigantesca de monitoramento de todas as informações do mundo financeiro.

Esse tipo de guerra que bloqueia a ação de um país no campo econômico internacional, entretanto, tem de ser qualificada.

Esses países ocidentais já fizeram esse tipo de exclusão, como arma de guerra direta, contra a Coreia do Norte. Mas, no caso do país asiático, ele já havia se “auto excluído” do sistema econômico financeiro e, por isso, as medidas tiveram pouco impacto. Já no caso de Irã e Venezuela, essas ações tiveram um impacto maior e aprofundaram a crise econômica dos dois países.

Estratégia

Como disse o ex-presidente americano Woodrow Wilson, ao final da Primeira Guerra Mundial, a guerra econômica era a melhor delas porque liquidava o adversário sem matar ninguém explicitamente.

Mas, ocorriam mortes como consequência da fome e da incapacidade de tratar doenças.

Se isso foi percebido em 1918, imagina em 2018 quando o Donald Trump aplicou as últimas sanções contra o Irã, numa situação ainda extremamente complicada pelo fato de que em 1974 os Estados Unidos firmaram um acordo com o rei Faisal da Arábia Saudita, pelo qual toda transação do petróleo se faz em dólar, e até hoje todo mundo transaciona o petróleo em dólar.

Portanto, o Irã ficou inteiramente “aleijado” com a sua exclusão de todo um sistema financeiro. Eles não podiam sequer alugar um navio para transportar petróleo.

No caso dessas sanções contra o Irã, a moeda iraniana desvalorizou quatro vezes em seis meses, o PIB caiu 7% em um ano, a produção de petróleo caiu 1 milhão de barris em um ano, as exportações de petróleo do Irã caíram de 2,8 milhões de barris para 500 mil. A despeito desses impactos duríssimos para a economia iraniana, o país resistiu por outros instrumentos, assim como a Venezuela.

Não restam dúvidas que a capacidade de reação da Rússia é infinitamente superior em relação ao Irã, Venezuela e Coreia do Norte.

Apesar das previsões catastróficas sobre a economia russa, os efeitos têm sido relativamente controlados por Putin. Embora haja uma previsão de queda do PIB russo, a inflação está sob controle e o rublo se valorizou. Além disso, as exportações russas cresceram, incluindo a de petróleo, principalmente para a Ásia.

Isso não significa que as sanções não afetaram a economia russa, mas que elas não promoveram uma asfixia rápida que poderia alterar o curso da guerra. A Rússia não mudou a sua posição, pelo contrário, aumentou o seu envolvimento na guerra.

Dessa forma, a perspectiva futura é de que os efeitos devastadores que ocorreram na Venezuela e no Irã não devem ser replicados para a Rússia.

Nesse sentido, é fundamental compreender que a eficácia desse tipo de guerra econômica de acordo com o grau de coordenação dos “atacantes”, mas também com o perfil do país que está sendo atacado.

Resistência e deslocamento

Nesse caso, os países europeus e os Estados Unidos parecem não ter calculado corretamente o poder de resistência russa que não apenas é uma potência energética, com elevadas reservas de carvão, petróleo, gás natural, mas também uma gigantesca potência militar, como maior arsenal atômico do mundo.

E, além disso, é uma das grandes potências minerais estratégicas do mundo, e ainda agregou nos últimos 10, 15 anos que se transformou numa potência alimentar produtora de grãos.

Isto é, europeus e americanos não avaliaram a capacidade de resistência da Rússia, seja pelas suas potencialidades energéticas, minerais e militares, seja pela sua forte aproximação econômica com a Ásia, principalmente a China.

Não por acaso, a Rússia tem estreitado suas relações econômicas com a Ásia há alguns anos.

Os russos, por exemplo, já conseguiram um sistema próprio de transferência monetária em parceria com China e Índia, permitindo “fugir” parcialmente do dólar e do euro.

Dessa forma, fica claro que, além da sua maior capacidade de resistência, uma outra perspectiva futura é de um maior descolamento da Rússia em relação à economia europeia.

Nesse sentido, a tendência é de um contínuo crescimento dos laços econômicos da Rússia com a Ásia, ou seja, a guerra e a resposta europeia criaram um “impulso definitivo” da Rússia em direção à Ásia, seja pelo receio da replicação de guerra econômicas na Ásia, seja pelos estragos econômicos que uma crise grave na Rússia pode causar.

Enquanto isso, a economia europeia tende a sofrer por sua dependência energética da Rússia, o que deve, inclusive, afetar o projeto econômico solidário da União Europeia que está suspenso por um longo tempo.

O mapa energético do mundo mudou definitivamente, isto é, o petróleo e o gás russo cada vez mais estão indo na direção da Ásia e de outros países em vez da Europa.

O que fica claro, portanto, é que a aproximação financeira e comercial da Rússia com a Ásia tende a aumentar o poder de resistência russo e, além do mais, criar dificuldades para a Europa atender sua demanda energética, atualmente muito dependente da Rússia.

Dessa forma, não é impossível que esse “erro” de cálculo das “potências ocidentais” acabe provocando um dano de longo prazo muito maior dentro da União Europeia do que na própria Rússia.

Basta olhar para o avanço das divisões internas que estão fragmentando os sócios europeus e jogando uns contra os outros, enquanto avançam a crise econômica e as revoltas sociais, junto com um verdadeiro tufão de ultradireita que pode acabar enterrando os últimos vestígios da grande utopia europeia da segunda metade do Século 20.

Ao mesmo tempo em que esta ofensiva externa recoloca a Rússia numa posição defensiva obrigando-a a retomar sua velha estratégia de sucesso através dos tempos, como um caso clássico de “economia de guerra” que sempre se desenvolveu e deu seus grandes saltos tecnológicos quando se viu ameaçada por forças externas.

Só o futuro, entretanto, nos permitirá saber quais serão as consequências e resultados futuros desta retomada europeia de suas infinitas guerras através dos séculos.

*Este artigo edita nossa palestra feita no Webinário do Ineep, no dia 9 de julho de 2022, O mundo depois da Guerra da Ucrânia: o que veio para ficar.

José Luis Fiori é professor permanente do programa de pós-graduação em Economia Política Internacional (Pepi/IE/UFRJ), coordenador do Laboratório de Ética e Poder Global (UFRJ) e pesquisador do Instituto de Estudos Estratégicos de Petróleo, Gás e Biocombustíveis (Ineep).

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