A democracia brasileira precisa de um exorcismo
Foto: Igor Sperotto
Foto: Igor Sperotto
Derrida disse que um fantasma é sempre um ser retornante. Sem entrar nas complexas suposições e implicações psicanalíticas dessa afirmação, queria tomá-la para fazer uma reflexão sobre o que está acontecendo no Brasil neste final de 2022. A democracia brasileira está sendo assombrada por seres retornantes que já viveram na história do país em diferentes momentos. Os fantasmas do autoritarismo, do fascismo e agora, explicitamente, do nazismo estão visíveis por toda parte: na frente de quartéis, nas estradas, nas ruas, em restaurantes, escolas, aeroportos, redes sociais e por aí vai. É como se uma parte da sociedade brasileira estivesse possuída por esses espectros que saíram das sombras e ganharam a luz do dia. A metáfora da possessão não parece exagerada quando se veem as cenas bizarras de pessoas fazendo rituais de invocação passando os celulares sobre a cabeça, pedindo intervenção de generais ou mesmo de seres extraterrestres.
O retorno dos fantasmas, no caso brasileiro, está diretamente ligado à impunidade e à falta de responsabilização pelos seus atos do passado. Seguindo ainda a metáfora da possessão, é como se eles tivessem permanecido adormecidos nas profundezas do tecido social brasileiro, aguardando o momento propício para retornar. Quem já viu filmes sobre exorcismo sabe que uma das condições para que o demônio deixe o corpo possuído é que ele diga o seu nome ao padre ou condutor do ritual.
No artigo “Nomear o espectro” (Sul21 – 29/11/2022 – Coluna da Appoa), os psicanalistas Alexei Conte Indursky e Norton Cezar Dal Follo da Rosa Jr. falam sobre a importância do ato de nomear “para que possamos nos responsabilizar por algo que aconteceu”. Na história brasileira, a ausência de nomeação é dupla: os fantasmas que retornaram tentam ocultar seu verdadeiro nome e aqueles que estão sendo assombrados, nós todos e todas no caso, resultam também em identificá-los.
Também como nos filmes de terror, as assombrações têm manifestações de violência física que foram se tornando cada vez mais frequentes ao longo do ano. Após o segundo turno, que decretou a vitória de Luiz Inácio Lula da Silva, elas se materializaram em bloqueios de estradas, ameaças, agressões verbais e físicas em ambientes diversos e ataques a opositores políticos.
Em Santa Catarina, por exemplo, a vereadora Maria Tereza Capra (PT), de São Miguel do Oeste, passou a sofrer ataques e ameaças depois que denunciou a realização de atos antidemocráticos na região que ganharam visibilidade nacional com a cena de bolsonaristas cantando o hino nacional e imitando a saudação nazista. Também em Santa Catarina, a vereadora Giovana Mondardo (PCdoB), de Criciúma, foi ameaçada de cassação por criticar esse tipo de manifestação. A acusação feita para justificar tal pedido (que acabou sendo arquivado) é que ela estaria dando “visibilidade negativa e ofensiva” ao estado de Santa Catarina.
A tolerância (e conivência) de autoridades policiais e militares em relação a esses atos foi, até o final de novembro, inversamente proporcional àquela demonstrada em relação a manifestações de sindicatos, estudantes, movimentos sociais e populares, quando o “braço armado” da lei costuma agir rápido e forte. Essa postura tímida, para usar uma palavra generosa, também faz parte do cenário de assombração que paira sobre a democracia brasileira, uma vez que boa parte dessas instituições policiais e militares é composta por protagonistas do roteiro de impunidade (em relação à violência do Estado) que marca a história do Brasil.
É um ciclo que se repete: violência, impunidade dos agentes do Estado, mais violência, ambiente ainda mais contaminado agora com a propagação de discursos de ódio e morte pelas plataformas digitais e na vida concreta. Aos fantasmas que ressurgem do passado, somam-se novas encarnações do mal, da violência e da morte com roupagem própria do tempo presente.
Praticamente não há dia em que não tenhamos notícia de um crime que brotou desse solo. E isso ocorre envolvendo patamares de violência cada vez maiores, como ocorreu no dia 25 de novembro, em Aracruz (ES), que foi palco trágico de um duplo atentado contra duas escolas, praticado por um jovem de 16 anos, que provocou a morte de quatro pessoas, três professoras e uma estudante. Segundo a Polícia, o adolescente autor do ataque contra as escolas usou duas armas de responsabilidade do pai, um policial militar.
A democracia brasileira parece estar precisando de um exorcismo para se livrar definitivamente dessas encarnações da morte e da violência que vem escalando em um clima que parece não ter fim.
Marco Weissheimer é colaborardor mensal do jornal Extra Classe
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