O estouro está nos gastos com juros e mecanismos do Sistema da Dívida e não nos gastos sociais
Foto: Agência Câmara/Divulgação
No apagar das luzes de 2022, assistimos à grande dificuldade que o presidente eleito Luís Inácio Lula da Silva enfrentou para garantir a continuidade do benefício social de R$ 600,00 à população mais vulnerável, que atualmente recebe Auxílio-Brasil nesse valor, com vigência somente até dia 31 de dezembro de 2022. Já existe anuência do Supremo Tribunal Federal, a partir da decisão de Gilmar Mendes de que o Bolsa Família pode ficar fora do teto de gastos. Também houve a aprovação em primeiro turno do texto base da PEC da Transição. A definição ainda depende da conclusão da votação dos destaques em 1º e segundo turnos, avaliação do Senado Federal.
Lula pretende manter o valor de R$ 600,00 para o benefício social que será denominado Bolsa-Família a partir de 2023, e mais R$ 150,00 para cada criança com até 6 anos de idade, além de recursos para garantir um reajuste real para o salário-mínimo, entre outros, detalhados na tabela a seguir, divulgada pelo relator do projeto de lei orçamentária de 2023 no Congresso Nacional, Deputado Marcelo Castro:
Fonte: Câmara dos Deputados
Fonte: Câmara dos Deputados
Como se vê na tabela, a soma de todas essas destinações totaliza R$ 145 bilhões e constou da PEC 32/2022, a chamada “PEC da Transição”, que já foi aprovada no Senado e passa por grandes dificuldades na Câmara dos Deputados.
A autorização para essas despesas não seria motivo de tantos embates, caso não existisse a trava do chamado “Teto de Gastos”, instituído pela Emenda Constitucional no 95 desde 2016. Tal limitação, restrita para gastos e investimentos sociais e gastos com a estrutura do Estado, deixa fora do teto os gastos com a chamada dívida pública, justamente onde se localiza o rombo das contas públicas.
O déficit nominal histórico das contas públicas no Brasil decorre do gasto excessivo com juros da chamada dívida pública, como mostra o gráfico seguinte, construído com dados do Banco Central.
Fonte: Banco Central
Fonte: Banco Central
Desde março de 2021, o Banco Central vem elevando a taxa básica de juros Selic de forma galopante (saltou de 2% a.a. para absurdos 13,75% a.a.), sob a falsa justificativa de controlar a inflação, que na verdade decorre principalmente da elevação dos preços administrados (combustíveis, energia, dentre outros) e de alimentos, que não se reduzem com a elevação de juros.
Além de impactar em todas as demais taxas de juros praticadas no país, amarrando a economia e travando a circulação do dinheiro na economia, os juros altos sacrificam tanto as famílias (80% se encontram endividadas e desesperadas) como inviabilizam as empresas de acessar crédito para investir ou ampliar seus negócios. O setor público também é fortemente impactado, pois os juros altos são o principal fator de crescimento da dívida pública em todas as esferas: federal, estadual e municipal. Por isso é tão importante a campanha pelo limite dos juros no Brasil. Basta acessar e votar na enquete oficial da Câmara e envie mensagem a parlamentares com apenas um clique, usando a ferramenta que a Auditoria Cidadã da Dívida preparou.
Na esfera federal, o resultado prático da exagerada elevação dos juros pelo Banco Central é o aumento brutal do gastos com juros da dívida pública (projetado pelo Conselho Federal de Economia em R$ 700 bilhões para este ano de 2022), sobressaindo-se o gasto com a remuneração diária da sobra de caixa dos bancos, a Bolsa-Banqueiro, uma injustificada e parasita despesa que, para 2022, estimamos em cerca de R$ 200 bilhões.
Esses gastos financeiros que beiram o trilhão de reais não são mencionados pela grande mídia, que chega a chamar a PEC 32/2022 de “PEC do Estouro”, já que ela aumenta o limite do famigerado “teto de gastos” sociais, sem, contudo, revogá-lo, como deveria.
Todo esse embate para se aprovar a PEC da Transição acontece quando possuímos cerca de R$ 5 trilhões em caixa e, adicionalmente, batemos recorde de arrecadação tributária, mas tudo está sendo destinado para os gastos financeiros com a dívida, como o próprio relator do orçamento afirmou, segundo publicado pela Agência Senado:
Castro também disse que houve excesso de arrecadação em 2021 (R$ 300 bilhões a mais) e em 2022 (até R$ 270 bilhões) e que “todo este recurso vai para o pagamento do serviço da dívida”. O senador disse ser necessário direcionar uma pequena parte do excesso de arrecadação para investimentos no ano seguinte, já que “a capacidade de investimento do país diminuiu após a criação do teto de gastos públicos”.
Está mais que evidente que o “estouro” está nos gastos com juros e mecanismos do Sistema da Dívida, e não nos gastos sociais. Por isso, para destravar a economia do Brasil, é urgente enfrentar o Sistema da Dívida, conforme sugerimos em Carta Aberta dirigida ao presidente eleito, ao Congresso Nacional e à sociedade, que esperamos sirva de inspiração para que possamos virar esse jogo e sair da escassez inaceitável que vem sendo imposta ao povo brasileiro, enquanto bancos estão abarrotados de lucros e rentistas fazem a festa dos juros altos.
Maria Lucia Fattorelli é coordenadora Nacional da Auditoria Cidadã da Dívida, membro da Comissão Brasileira Justiça e Paz (CBJP), organismo da CNBB; e coordenadora do Observatório de Finanças e Economia de Francisco e Clara da CBJP. Escreve mensalmente para o Extra Classe.