Negação do piso e subproletarização da docência
Foto: Marcelo Camargo/ Agência Brasil
Uma lei federal de 2008, que está completando 15 anos em julho próximo, produz controvérsias e reações contrárias todo início de ano: trata-se da Lei nº 11.738, de 16 de julho de 2008, que regulamenta o inciso III do caput do art. 60 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, instituindo o piso salarial profissional nacional para os profissionais do magistério público da educação básica.
A lei nº 11.738 determina no Art. 5o que o “piso salarial profissional nacional do magistério público da educação básica será atualizado, anualmente, no mês de janeiro, a partir do ano de 2009” e, que esse piso salarial profissional nacional é o valor abaixo do qual a União, os estados, o Distrito Federal e os municípios não poderão fixar o vencimento inicial das carreiras do magistério público da educação básica, para a jornada de, no máximo, 40 horas semanais.
Manifestações de entidades municipalistas, como a Confederação Nacional dos Municípios (CNM), contra a Portaria do MEC nº 17/2023, que atualizou o piso do magistério de 2023 em 14,95%, retomam argumentos infundados como já fizeram por ocasião da publicação da Portaria MEC nº 67, o qual atualizou o piso em 2022. O Supremo Tribunal Federal (STF), em passado recente, já considerou constitucional, legal e direito dos docentes.
O piso do magistério de 2022 era R$ 3.845,63. Em 2023, com o reajuste de 14, 95%, passou para R$ 4.420,55, para uma jornada de 40 horas semanais.
Vamos comparar com outros aumentos bem superiores concedidos no serviço público no mesmo período e não questionados: os ministros de STF, que é referência para os demais poderes, teve um reajuste de 18%, passando o salário para R$ 41.650,92 em 2023, com reajustes escalonados anualmente, chegando em 2025 a R$ 46.366,19. Os servidores da Câmara e do Senado tiveram aumento de 18,13%, também escalonados, entre 2023 e 2025.
No Rio Grande do Sul, um dos cinco estados que questionou no passado a constitucionalidade da lei do piso, o salário do governador passou de R$ 26.841.71 para R$ 35.462,22 mensais, aumento de 32%. O vice-governador e os secretários tiveram um reajuste de 47%, com seus salários passando de R$ 20.131.29 para R$ 29.594.45. A Câmara Municipal de Porto Alegre propôs um aumento de 70% para vencimento do prefeito e 50% para o vice-prefeito e secretários. A proposta foi barrada pela oposição.
A docência e o piso
A reação contrária de parte de gestores públicos estaduais e municipais é descabida por inúmeras razões. O novo Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb) prevê o aumento gradativo de sua complementação pela União dos atuais 10% para 23% até 2026; sendo que, para 2023, já será 17%; 2024, 19%; totalizando os 23% em 2026. Além disso, o Fundo determina que 70% dos valores sejam investidos no pagamento de profissionais da educação básica.
Importante rememorar que em 2020 e 2021, em plena pandemia, vários estados e municípios não investiram os percentuais constitucionais previstos nas constituições estaduais e Leis Orgânicas Municipais na educação, reduziram gastos em momentos de calamidade pública e, inclusive, defenderam a flexibilização dos percentuais para a educação devido a sobra de recursos.
A ausência de um salário digno é um dos principais, senão o principal, indicadores da desvalorização da carreira docente no Brasil. A reversão desse quadro é imprescindível para que a carreira tenha maior atratividade.
Porém, a agenda está sendo inviabilizada pela PEC-95 e por concepções neoliberais da economia, sendo frequentemente avançada a proposta de condicionar salários dignos ao cumprimento de metas pouco realistas de desempenho dos alunos em testes padronizados, num país campeão em desigualdades sociais, regionais, tecnológicas e educacionais.
Metas que tratam da valorização dos profissionais da educação estão previstas nas leis que instituíram o Plano Nacional de Educação (PNE) 2014-2024 – Metas 15, 16, 17 e 18, nos Planos Estaduais de Educação (PEEs) 2015-2025 e nos Planos Municipais de Educação (PMEs) de 2016-2026. Aliás, leis e metas que na sua grande maioria estão sendo descumpridas pelos entes federados sem a devida responsabilização dos gestores.
Questionar e descumprir a lei do Piso, a Lei do Fundeb e as demais leis que instituem os planos e políticas educacionais é tão ou mais relevante que atender as metas de superávit e teto de gastos públicos. A sociedade precisa tomar consciência e lutar pelos seus direitos sociais e educacionais, até por que a educação é um dever do estado, da sociedade e das famílias.
O que as metas determinam e o que foi descumprido
Referente as Metas e Estratégias previstas no PNE 2014-2022, a Campanha Nacional pelo Direito à Educação, em seu Balanço Nacional de Educação de 2022, apontou a seguinte condição:
Meta 15 – Garantir, em regime de colaboração entre a união, os estados, o Distrito Federal e os municípios, no prazo de 1 ano de vigência deste PNE, política nacional de formação dos profissionais da educação de que tratam os incisos I, II e III do caput do art. 61 da Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, assegurado que todos os professores e as professoras da educação básica possuam formação específica de nível superior, obtida em curso de licenciatura na área de conhecimento em que atuam.
Conforme balanço da Campanha Nacional, em nenhuma das etapas da educação básica o avanço no percentual de docências com formação adequada tem sido rápido o suficiente para que se atinja até 2024 o nível estipulado no plano.
Meta 16 – Formar, em nível de pós-graduação, 50% dos professores da educação básica, até o último ano de vigência deste PNE, e garantir a todos os profissionais da educação básica formação continuada em sua área de atuação, considerando as necessidades, demandas e contextualizações dos sistemas de ensino.
Porém, desde 2014, essa porcentagem vem aumentando a 1,9 pontos percentuais por ano, em média, o que é pouco maior do que o ritmo necessário para atingir o nível disposto no PNE, mas para materializar o cumprimento do objetivo é necessário manter o ritmo observado. Também, o formato restrito de divulgação do Censo da Educação Básica implementado no início de 2022 não permite mais o cálculo dos indicadores desta meta. Assim, os dados de 2021 tiveram que ser obtidos via Lei de Acesso à Informação.
Sobre a formação continuada em suas respectivas áreas de atuação dos 2.230.891 docentes em atividade na educação básica, 1.233.192 ainda não haviam recebido qualquer tipo de formação continuada. Sem mudanças na trajetória de evolução deste quadro, deve-se chegar a 2024 ainda muito distante do objetivo prescrito na meta.
Meta 17 – Prevista para 2020, a meta de equiparar o salário médio dos professores ao dos outros profissionais de mesma idade não foi cumprida no prazo, tendo avançado a cerca de um terço do ritmo necessário ao seu cumprimento. Sem alteração desse padrão de evolução, a tendência é que ao fim da vigência do atual PNE a situação ainda esteja irregular.
Meta 18 – Assegurar, no prazo de dois anos, a existência de planos de carreira para os profissionais da educação básica e superior pública de todos os sistemas de ensino e, para o plano de carreira dos profissionais da educação básica pública, tomar como referência o piso salarial nacional profissional, definido em lei federal, nos termos do inciso VIII do art. 206 da Constituição Federal.
Considerando todos os dispositivos em conjunto, 13 entre as 27 redes dos estados e do distrito federal e, aproximadamente, 76% das redes municipais estão em situação irregular segundo a meta 18 do Plano Nacional de Educação.
Meta 20 – Além do descumprimento das quatro metas relativas a valorização do trabalho docente, o mais grave é o descumprimento da Meta 20 que prevê ampliar o investimento público em educação pública de forma a atingir, no mínimo, o patamar de 7% do Produto Interno Bruto (PIB) do país no 5º ano de vigência desta Lei 92019 e, no mínimo, o equivalente a 10% do PIB ao final do decênio (2024). Nos governos Temer e Bolsonaro tivemos redução dos investimentos em educação.
Subproletarização do trabalho
A subproletarização do trabalho não está restrita apenas aos trabalhadores da educação, mas abrange profissionais de diferentes setores e tem se agravado nos últimos anos em decorrência das sucessivas reformas trabalhistas no contexto das relações trabalho-capital.
Porém, no campo da educação, além da relativização das conquistas que muito fortaleciam a condição docente no trabalho educativo, como a participação dos professores nos processos decisórios e a formação inicial em cursos de licenciatura, percebe-se um recrudescimento nos processos de precarização de sua condição com a crescente desvalorização salarial. Também, na destruição dos planos de carreira, na não reposição salarial em contextos inflacionários, no aumento de contratos temporários de trabalho e contratos de horistas e a utilização do notório saber como forma de banalizar os conhecimentos pedagógicos próprios do trabalho do professor.
Segundo Renato Janine Ribeiro, presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) , precisamos que a sociedade assuma de fato a importância da educação, visto que ela historicamente nunca foi valorizada.
A primeira Constituição Brasileira que estabelece quais os anos de educação obrigatória é somente a de 1946. Hoje, estabelecemos 14 anos de ensino obrigatório (dos 4 aos 18 anos), porém, nem todos cumprem e responsabilizamos ninguém pela negação do direito à educação de nossas crianças, adolescentes e jovens.
Mais desmonte e teoria da conspiração
Os professores Fernando Pena (UFFRJ) e Renata Aquino (FFP-UERJ) denunciaram, em artigo no jornal Le Monde Diplomatique Brasil, que as instituições de ensino modificaram currículos, suprimiram disciplinas e rearranjaram turmas para demitirem em massa professores e aumentarem os lucros. Agora, ampliam a denúncia no sentido de que o bolsonarismo dos últimos quatro anos se formou a partir de teorias da conspiração e usou como estratégia a formação de grupo de ataques constantes a sistemas de verificação e de construção de conhecimento entre pares.
Logo, jornalistas e docentes foram usados como alvos por meio do medo e do ódio. Teorias da conspiração foram tomando o lugar do pensamento crítico no entendimento da realidade social brasileira, cuja prova de pura ignorância e barbárie se expressaram nos ataques contra a democracia no dia 8 de janeiro de 2023.
Ataques à Lei do Piso do Magistério, por entidades municipalistas e mesmo gestores públicos, afrontam não só os professores e a educação, mas o regime democrático, o estado de direito e decisões do Supremo Tribunal Federal.
É hora de pensar políticas de reparação à categoria profissional que o bolsonarismo transformou em inimiga. Descontinuar as políticas educacionais de Estado, inviabilizar a escola pública, perseguir professores e destruir a dignidade e a carreira docente, através de relações precárias e líquidas, atinge dimensões catastróficas. Sem docência dignificada e valorizada não teremos educação e, sem educação, não teremos um país justo e democrático! docência, docência, docência, docência, docência, docência, docência, docência
Gabriel Grabowski é professor e pesquisador. Escreve mensalmente para o jornal Extra Classe.