A escola do século 21: o ensino médio (re)vive na resistência, aqui e agora
Foto: Valter Campanato/Agência Brasil
Há poucas semanas, em público, a dirigente da Secretaria Estadual da Educação enunciou: “A escola precisa mudar para estarmos em sintonia com as necessidades do século 21”. De acordo! É preciso que faça sentido no presente.
Mas o que isso quer dizer? Em pesquisas temos ouvido que, dentre outras, requer a apropriação das tecnologias pelos professores, internet acessível à comunidade escolar, bibliotecas abertas e com profissionais habilitados, alimentação escolar digna, ações de apoio à matrícula e à frequência, bem como um currículo relevante aos conhecimentos e expectativas de atuais alunas, alunes e alunos.
A lista de necessidades manifestas pelas escolas é vasta e, se perguntarmos o que falta em cada escola, na maioria, escolas estaduais, teremos uma miríade de medidas a tomar para chegar a tudo o que se deseja.
A qualidade na/da educação é polissêmica justamente por carregar diferentes sentidos e expectativas. Como encontrar a qualidade?
Pode parecer contraditório, mas para pensar sobre a escola para o século 21 ajuda retomar o passado, para refletir sobre quem chegou e quem está chegando ao ensino médio.
Em 1990, no Brasil, eram apenas 17% dos jovens entre 15 e 17 anos, o que evidencia que o ensino médio é uma história de exclusão. Hoje, a matrícula chega a 70% dos jovens na idade prevista.
São, portanto, em maioria, estudantes cujas famílias foram historicamente segregadas da escola mas que, com elas, agora resistem às adversidades permanecendo na seriação.
Esse é ponto importante para reconhecer os limites de agora, mas não elogiar às cegas a escola de outrora, cuja dita excelência baseava-se na exclusão. Era boa porque servia à hierarquia social.
A democratização do ensino médio – meta ainda inconclusa – tem como pano de fundo uma disputa igualmente histórica, que merece novo olhar ao passado.
A bibliografia aponta o resistente dualismo estrutural: uma escola para os trabalhadores, outra para os dirigentes
A primeira, tributária dos ofícios mecânicos, sem teorização, à Charles Chaplin em Tempos Modernos. Não precisa de aulas de sociologia, filosofia e história ou de laboratórios; admite currículo abreviado, pobre ensino noturno, esvaziada EJA e Enem como supletivo.
A segunda, escola de formação geral com perspectivas de estudos superiores e ascensão social, é a instituição do status quo.
A estrutura binária é determinante para que a história no ensino médio também seja uma história de exclusão. Com projetos distintos, não há possibilidade de sociedade igualitária e justa, pois as escolas de educação básica não são locus de garantia de direitos.
Dito isto, afirmamos: não é possível planejar democraticamente a educação sem contar com aqueles que historicamente foram excluídos.
Soa estranho que governantes autodenominados como técnicos ignorem que perpetua a segregação no atual projeto de ensino médio.
Não dizemos desta perspectiva apenas pela implementação da reforma curricular, mas também pelo processo de sua construção e a concepção subjacente.
Quem tem tido voz e vez na formulação da política educacional são grupos institucionalizados como apoiadores e colaboradores, mas de fato são “influenciadores” e promotores de interesses de classe.
O posicionamento de estudantes, professores e pesquisadores tem sido evidentemente secundarizado. A revista Retratos na Escola relata como em diferentes unidades federativas as decisões são de gabinete ou avalizadas por duvidosa participação.
Para planejar o ensino médio do século 21 seria preciso ouvir estudantes, professores e funcionários das escolas, pesquisadores e lideranças comunitárias
Não para dizerem “amém” a algo decidido muitas vezes além-mar, como mostram diferentes estudos, mas para que efetivamente participem, sejam parte e tenham parte. Há falta de escuta.
Onde está a voz de quem ocupou as escolas públicas gaúchas em 2016?
Assim, não é possível construir um planejamento democrático sem respeitar as construções coletivas, acordos estabelecidos na política em suas diferentes dimensões.
Onde está o Plano Nacional de Educação?
Por que as diretrizes curriculares de 2012, construídas em tais premissas, foram ignoradas?
Por que nunca foi considerada a Resolução 340/2018 do Conselho Estadual de Educação do RS?
Queremos construir projetos político-pedagógicos a partir das histórias dos seus sujeitos e com respeito às normativas definidas na coletividade.
Como ficam professores de filosofia, sociologia, educação física, artes, espanhol, física, química e biologia com diminutos períodos na matriz curricular da rede estadual?
E as perspectivas de vida dos estudantes? Suas próprias histórias de formação e atuação profissional como de direitos e expectativas – vidas apagadas e vozes ensurdecidas no projeto escolar!
Vale ressaltar ainda que é impossível planejar democraticamente um novo ensino médio sem recursos.
O melhor ensino médio que temos é dos Institutos Federais e dos Colégios de Aplicação, escolas públicas com mais recursos por aluno.
A reforma atual é, evidentemente, parte de um Estado de contenção de gastos públicos e, por conseguinte, de restrição de direitos.
Como prometer liberdade sem melhorar condições? Como despender recursos públicos sem discutir o enfrentamento da desigualdade?
Revogar o Novo Ensino Médio é a pauta atual, pois essa reforma, ao flexibilizar sem garantir mais recursos descentralizados, fica reduzida a um processo privatista e hierarquizante de compras e contratos da cúpula, que limitam e controlam o que e como se ensina e aprende.
Esta reforma desarticula os projetos político-pedagógicos das unidades escolares, fragmenta os currículos, aprofunda diferenças entre escolas no mesmo território e na mesma rede.
Há uma lógica competitiva e excludente nas concepções e na estruturação normativa promulgada desde 2016. É preciso menos prescrição e mais espaço para a construção político-pedagógica em cada comunidade escolar.
Apesar dos pesares, há reflexão, há resistência, em escolas públicas e privadas. A escola sobrevive no século XXI. O ensino médio (re)vive na resistência, aqui e agora!
Mateus Saraiva é doutor em Educação, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), Ângela Chagas é doutoranda em Educação (Ufrgs) e Maria Beatriz Luce é professora da Ufrgs.