OPINIÃO

Dois conceitos para enfrentar a cultura da violência

Por Marco Weissheimer / Publicado em 9 de maio de 2023
Ações e palavras: esses são os dois domínios fundamentais por onde a violência é cultivada e praticada na sociedade.

Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil

Ato em defesa da paz nas escolas, em São Paulo, realizado em abril de 2023, após vários ataques de violência em escolas pelo país

Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil

Como enfrentar a cultura da violência que se alastrou pela sociedade atingindo, inclusive, um de seus recantos mais preciosos, a saber, os espaços de escolas, salas de aula e mesmo creches para crianças? violência violência  violência

Para tentar começar a buscar respostas para essa pergunta, talvez seja importante refletir um pouco sobre sua própria formulação.

O que significa falar de “cultura da violência”? Faz sentido associar a palavra “cultura” a práticas de violência e morte?

É um uso ampliado, com certeza, que transcende os limites semânticos tradicionais, nos quais pensamos a cultura como algo positivo e promotor da vida.

Mas parece ter um sentido mais específico também, que pode nos ajudar a ver a profundidade desse fenômeno que nos choca praticamente todos os dias.

Há uma “cultura da violência” que tem suas raízes fincadas em um campo simbólico, onde ações e palavras se cruzam, criando como que um universo paralelo subterrâneo que vem invadindo a superfície de nossas vidas.

Ações e palavras: esses são os dois domínios fundamentais por onde a violência é cultivada e praticada na sociedade

Parece ser neles, portanto, que precisamos buscar respostas para a questão que nos desafia de modo urgente e dramático.

Dois conceitos que fazem parte da filosofia do Yoga conversam diretamente com esses dois domínios e podem nos ajudar a enxergar caminhos para enfrentar essa situação.

São dois preceitos que estão na base do Yoga, do budismo e também, sob formulações distintas, na tradição da filosofia ocidental.

São eles: ahimsa (não violência) e satya (veracidade).

Esses dois conceitos integram uma lista de cinco princípios (yama) que funcionam como preceitos para nossa vida cotidiana, apontando aquilo que devemos nos abster de fazer em nosso convívio social e com os demais seres vivos de modo geral.

Todos eles estão conectados entre si e ligados aos nossos órgãos de ação.

O conceito de não violência (ahimsa) é o primeiro da lista e não por acaso, uma vez que todos os demais estão subordinados lógica e praticamente a ele.

Ele é menos passivo e ingênuo do que pode parecer a alguns, considerando a conjuntura social que vivemos hoje.

Ele prega a não violência não apenas no sentido estrito de não matar ou de não praticar violência física, mas também em observar como a violência pode estar presente em nossas palavras, pensamentos e atitudes cotidianas.

Talvez tenhamos dificuldade em reconhecer o quanto a violência está presente em nossos gestos, pensamentos e palavras com que nos cerca.

Esse olhar sobre nós mesmos pode nos surpreender e alertar para a nossa própria responsabilidade sobre o que estamos vivendo hoje.

Já o conceito de veracidade (satya) não significa somente procurar dizer a verdade, o que já não seria pouco em tempos em que a cultura da não violência anda de mãos dadas com uma “cultura da mentira”.

Esse conceito nos convida, entre outras coisas, a um compromisso com a palavra, com a sinceridade e ausência de segundas intenções no dizer, que podem ser tanto uma tentativa de enganar, de confundir, de distorcer ou, ainda, uma mera expressão de vaidade.

Ou seja, a ausência de veracidade pode se manifestar de muitas formas, e essa pluralidade de formas está muito presente na linguagem caótica que circula hoje pelas diferentes plataformas das chamadas redes sociais, as quais acabaram se tornando, também, um elemento difusor dessas variadas formas de violência citadas anteriormente.

Desde muito cedo, nossas crianças e, nem é preciso dizer, nossos adolescentes estão mergulhados neste mundo onde o compromisso com a veracidade, com a palavra pode se tornar tênue e difuso muito rapidamente.

Não é acaso, portanto, tampouco um ponto fora da curva, que as escolas tenham se tornado também elas um espaço sujeito a atos de violência

As causas desses problemas – da proliferação da violência física e simbólico e também da falta de veracidade, de compromisso com o sentido das palavras e da nossa fala – parecem ter se enraizado, na sociedade e em nós mesmos, de um modo mais profundo do que talvez estejamos dispostos a reconhecer.

Se é assim, as soluções para eles também têm que ganhar profundidade e incidir diretamente nas escolas.

O quão fundo estamos dispostos a cavar para remover as raízes das violências físicas, verbais e simbólicas?

Seja qual for essa profundidade, esse trabalho exige um mergulho sincero nas nossas instituições, na nossa linguagem e nas nossas práticas diárias.

A suspeita é que podemos estar contribuindo, mais do que supomos, por ações e omissões, para a proliferação dessa cultura da violência.

Marco Weissheimer é colaborador mensal do jornal Extra Classe.

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