O que se passou em Porto Alegre?
Foto: Igor Sperotto/Arquivo Extra Classe
Qual é o peso histórico de duas décadas? Que mudanças um período como esse comportam e como entendê-las? Essas perguntas podem ser úteis para pensarmos as transformações que ocorreram em Porto Alegre, capital do Rio Grande do Sul, em um período de pouco mais de 20 anos. Em 2001, a cidade virou notícia internacional ao sediar a primeira edição do Fórum Social Mundial, um evento organizado por movimentos sociais, coletivos e organizações da sociedade civil, reunidas em torno de um conceito comum: a necessidade de pensar e trabalhar pela construção de um outro mundo possível, distinto daquele que estava sendo erguido pelos arautos de uma globalização que prometia um mundo novo, sem fronteiras e com tecnologias que iriam trazer um período de prosperidade para a humanidade.
A primeira edição do FSM foi realizada em Porto Alegre, entre os dias 25 e 30 de janeiro de 2001, e o evento se apresentou como um contraponto ao Fórum Econômico Mundial de Davos, na Suíça, que reunia líderes econômicos e políticos da globalização capitalista. O lema “Um outro mundo é possível” expressava a busca por um sistema econômico democrático, sustentável e que não empurrasse para a exclusão, marginalização e pobreza milhões de pessoas. Em sua primeira edição, o FSM reuniu mais de 20 mil pessoas de 117 países e contou com a presença de ativistas, intelectuais e líderes da esquerda mundial.
O mundo, com certeza, era outro, e Porto Alegre e o estado do Rio Grande do Sul eram então governados pelo PT. A cidade foi escolhida para sediar o Fórum Social Mundial justamente pelas experiências de políticas públicas que vinham sendo construídas pelos governos de esquerda, com destaque para o Orçamento Participativo.
Mais de 22 anos depois, pouca coisa desse passado, além da memória dos que participaram dele, parece permanecer vivo na cidade. Desde que o PT perdeu a prefeitura de Porto Alegre, em 2004, quando José Fogaça derrotou Raul Pont na eleição, a cidade iniciou uma guinada para a direita, que segue até hoje. Fogaça foi o primeiro prefeito da Capital que não era do PT desde 1988, quando Alceu Collares foi eleito. Em 2004, mesmo com o desgaste praticamente inevitável de quatro governos sucessivos, alimentado por disputas internas dentro do PT, as políticas dos governos de esquerda na cidade ainda eram muito fortes, o que levou, inclusive, o candidato José Fogaça a adotar uma tática de incorporá-las em seu discurso, em especial o OP, repetindo uma platitude: fica o que está bom e muda o que não está. Os governos que se seguiram a ele, contudo, foram abandonando gradualmente as tentativas de assimilação (mesmo que de fachada) dos símbolos das administrações populares, e implementando um processo de desmonte das suas políticas.
Hoje, a cidade é governada por Sebastião Melo, do MDB, que apoiou Jair Bolsonaro nas eleições presidenciais de 2022, e foi eleito com apoio do voto bolsonarista, e do discurso de ódio e de mentiras da extrema direita, que atacou pesadamente a candidata Manuela D’Ávila, do PCdoB. Se, em 2001, Porto Alegre era uma referência para a esquerda internacional por suas políticas públicas e experiências democráticas, hoje se tornou um paraíso da especulação imobiliária, que conta com o apoio da prefeitura do município para uma política de desmonte ambiental, expressa em uma ofensiva sem precedentes contra espaços públicos, parques e áreas verdes da cidade. E se tornou também uma trincheira bolsonarista.
No ano que vem, teremos novas eleições municipais, e já começam as primeiras articulações e movimentos para a construção de uma aliança política capaz de derrotar o bloco bolsonarista-imobiliário que governa a cidade hoje. Não será tarefa fácil, tanto pela habitual tendência de uma divisão entre as candidaturas de esquerda, quanto pela base econômica e social que apoia o atual prefeito. Antes da definição de suas candidaturas, talvez fosse importante a esquerda pensar um pouco sobre o que aconteceu na cidade entre 2001 e 2023, não com um olhar saudosista, mas para tentar entender onde errou, como as forças sociais e políticas se movimentaram neste período e que transformações ocorreram no cotidiano da população. Essa reflexão parece importante também para não se incorrer no erro de fazer “mais do mesmo”, repetindo os reflexos condicionados que as vidas partidárias costumam impor, ignorando as experiências dramáticas que vivemos nos últimos anos. Outra Porto Alegre é possível. A história recente da cidade merece isso.