Foto: Reprodução/G1 Globo
O jornalismo de repórteres brancos, quase todos com o mesmo padrão e os mesmos ternos, não é mais o mesmo na Globo. E vai desaparecendo também nas outras TVs, como sintoma bom de um Brasil redescoberto com atraso pelas grandes vitrines da mídia nacional.
A Globo aciona todos os dias, em seus jornais de horários nobres, pelo menos um profissional negro, com entradas ao vivo. Quase sempre uma repórter negra, do Rio, de Alagoas, de Natal.
É como se o maior conglomerado de comunicação do Brasil tentasse compensar a morte de Glória Maria com a contratação ou a maior visibilidade a profissionais que pouco frequentavam seus telejornais.
Fica menor o latifúndio do repórter padrão, branco, com sotaque do Sudeste e do Sul, e passamos a ver mais o nordestino pardo ou o nortista com evidente ascendência indígena e cara de yanomami.
Sai o sujeito de cabelinho bem cortado e entra o negro de camiseta e barba. Há menos branquinhas de cabelo Chanel e ganha força a negra com cabelo black power.
A Globo descobre que o Brasil é negro, pardo, indígena, amarelo e surpreende com as caras novas que surgem das capitais e de toda a parte do interiorzão.
Talentos escondidos passam a ser reconhecidos, não porque a Globo ficou boazinha, mas porque o mundo mudava e a corporação vinha se fazendo de desentendida.
O padrão Globo, que fazia concessões aos negros apenas e invariavelmente quando do tratamento dispensado às grandes estrelas, reage ao não-padrão das redes sociais, do tik tok, do Brasil real. A internet avisa que a TV aberta ou fechada está em crise.
E o negro comum está na Globo, agora não só nas novelas e como objeto da notícia, por envolvimento com assaltos, tráfico, mortes e chacinas da polícia.
O modelo gaúcho de jornalismo na TV, exportado para Rio e São Paulo por demandas da Globo, era geralmente branco. Talentoso, criativo, atrevido, mas branco.
A Globo agora importa talentos negros e atrai jornalistas para suas principais bases. Fernanda Carvalho, ex-RBS, está no time de São Paulo. Negros apresentam o Jornal Nacional, e em dupla, como acontece várias vezes aos sábados com Márcio Bonfim e Aline Midlej.
O que parece ser um fenômeno de interesse apenas do jornalismo importa a todos nós. Abrir espaços ao Brasil não-branco é reagir a mobilizações às vezes silenciosas por mais espaço aos invisibilizados.
Negros e negras precisam ter mais cadeiras no Supremo. Não por imposição identitária, nem por pressão de branquelas oportunistas, mas porque estamos atrasados.
Pesquisa do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) mostra que apenas 1,7% dos magistrados do Judiciário brasileiro são negros e 12,8% identificam-se como pardos.
Em todo o Judiciário, somando-se os quadros de todas as áreas, apenas 29% dos servidores são negros e pardos. É o que diz o Diagnóstico Étnico-Racial do Poder Judiciário, divulgado agora, em setembro.
Não há uma mulher negra, uma só, para acompanhar no Supremo o voto da ministra Rosa Weber em defesa da descriminalização do aborto até os 12 meses de gestação. E as negras são as maiores vítimas de um drama e um tema tabus no Judiciário de machos brancos.
O consolo é que este ano notícias sobre mulheres negras são apresentadas na TV por mulheres negras. Sem roupas e óculos de grife. Sem trejeitos do padrão Globo asséptico e inodoro, sem os cacoetes das falas hegemônicas de sulistas.
Repórteres negras noticiam que crianças negras conquistam olimpíadas de matemática, vagas nas melhores universidades americanas, nota 10 nos melhores colégios do Piauí.
Jornalistas negros mostram que mulheres negras enfrentam o fascismo branco nas CPIs e no Congresso invadidos pela gritaria da extrema direita desorientada.
A Globo do entretenimento sempre nos acalmou com a arte do mundo progressista das novelas que afronta o moralismo religioso. Agora, acolhe o mundo real no espaço que melhor lida com a realidade, o do jornalismo profissional tomado de negras e negros.
Moisés Mendes é jornalista e escreve quinzenalmente para o Extra Classe.