OPINIÃO

Uma sombra sobre Porto Alegre

Por Cristiano Fretta / Publicado em 12 de setembro de 2023
Uma sombra sobre Porto Alegre

Foto: Iphan/ Divulgação

“Em nome do progresso, dirão os adeptos do investimento privado como regulador de todas as dinâmicas sociais, não há problema em sombrear parte da região alta do centro da cidade”

Foto: Iphan/ Divulgação

Acho a memória olfativa algo extraordinário.

Confesso que já esqueci um pouco as nuances do rosto da minha vó, falecida há mais de 20 anos, mas sempre que sinto cheiro de manjericão sou imediatamente transportado para os fundos de sua casa, na Avenida Souza Reis, em alguma tarde ensolarada do início dos anos 90.

O cheiro do manjericão faz com que eu me sinta, magro e cabeludo, a andar por entre o verde denso das plantas do fundo da casa, por hora, roubando uma uva da parreira ou acompanhando a distância o voo de um ameaçador zangão.

Havia muito sol naquelas tardes, um sol acolhedor e espalhado por cima da casa da minha avó. As lembranças mais felizes da minha infância são cheias de sol e cheiro de manjericão.

Mas o tempo, como diria Caetano, não para e, no entanto, ele nunca envelhece.

Quando ela morreu, em maio de 2000, a casa de madeira também começou a morrer. Primeiro foram os meus tios que começaram a achá-la grande e velha demais. Como que a compreender seus intentos, a própria casa fez com que surgissem buracos no velho chão de madeira e a passou a balançar com mais força quando as tempestades atingiam a zona norte de Porto Alegre.

Dessa forma, alguns meses após o velório de minha avó eu ajudava meus tios a tirarem as coisas de dentro da casa, cuidando para não enfiar o pé em nenhum buraco no chão.

Algumas semanas depois, quando eu voltava da escola em que estudava, parei atônito frente ao terreno: uma retroescavadeira, impiedosa e barulhenta, transformava o éden da minha infância em um monte de destroços.

Alguns dias depois os entulhos não estavam mais lá. Só restava um terreno plano, sem sinal de plantas ou sequer do pequeno murinho da frente. Só terra. Um cheiro fortíssimo de terra.

Eu observava a força da ausência da casa enquanto o cheiro se fixava nas entranhas da minha subjetividade como sinônimo da ausência da casa de minha infância.

Alguns meses depois foi inaugurado um quadrado e envidraçado prédio. A seguir, encheram o local de carros e começaram a vendê-los.

Havia uma S10 bem no lugar em que ficava a parreira da minha falecida avó.

Com o tempo, as casas de madeira da avenida Souza Reis foram sendo gradativamente substituídas por construções envidraçadas, e a região toda deixou de ter suas casinhas antigas, com suas senhoras a olhar o movimento da rua, para virar um amontoado de revendedoras de carro. Não há mais sol iluminando as casas.

Arquitetura de sombra

Porto Alegre acumula, nos últimos anos, uma série de absurdos contra o seu patrimônio público.

A demolição da casa de Caio Fernando Abreu, o abandono da antiga Casa Elétrica e a derrubada de árvores no Parque Harmonia são apenas alguns exemplos do quanto a memória cultural da cidade se encontra sem o menor cuidado.

A iniciativa privada, movida por sua noção de geração de lucro, relega a memória ao patamar das coisas inúteis e que não deve, portanto, ser empecilho para o “progresso”, seja lá o que ele signifique.

Nessa ótica, a Melnick, em parceria com o grupo Záffari, intenta construir uma torre de 41 andares, com 98 metros de altura, entre a Fernando Machado e a Duque de Caxias.

Há uma série de imbróglios legais contra a obra e inúmeras entidades já se posicionaram contra o projeto, alegando, entre outros motivos, que a construção causaria problemas de mobilidade urbana e sombreamento na Catedral Metropolitana.

O projeto não prevê mais um prédio alto em Porto Alegre, mas sim intenta construir um símbolo do capitalismo imobiliário em uma das regiões mais antigas de nossa capital.

Em nome do progresso, dirão os adeptos do investimento privado como regulador de todas as dinâmicas sociais, não há problema em sombrear parte da região alta do centro da cidade.

Que tal, então, construirmos um espigão em cada esquina, e assim sombrearmos não só os prédios, mas também nossas memórias?

Sombrearemos a arquitetura gótica de nossa catedral e deixaremos no escuro da memória as suas carrancas indígenas.

Sombrearemos toda a rua Espírito Santo, aberta em 1817 por determinação do então governador da província, o Marquês do Alegre, atendendo a requerimento de moradores da Rua do Arvoredo, atual Fernando Machado, que também pode ser sombreada, ela e sua lenda de guisado de carne humana.

Poderemos, quem sabe, sombrear todo o Alto da Bronze, sem nunca mais termos notícia de uma tal de Felizarda, prostituta conhecida como “Bronze”.

Sombrearemos, se possível, toda a Duque de Caxias, e nunca mais iremos saber que essa é uma das vias mais antigas da cidade e que já foi conhecida como Rua Formosa, Rua Direita da Igreja e Rua da Igreja.

Podemos aproveitar e já sombrearmos todo o centro de Porto Alegre, apagando as origens de nossa cidade, chamando-a de Porto Melnick Alegre.

Então, poderemos reescrever a nossa história, dizendo que os casais açorianos só chegaram até a cidade com o objetivo de erguer enormes construções.

Por fim, então, poderemos erguer uma enorme sombra sobre Porto Alegre.

Há alguns dias, andando pela avenida Sertório, passei em frente a uma obra de terraplanagem de um terreno.

Eu lembro de quando, naquele exato local, havia uma série de pequenos comércios, com portas na calçada.

O cheiro da terra fez com que eu me lembrasse da casa da minha avó.

Parece estar cada vez mais difícil se sentar à janela e aproveitar a paisagem de Porto Alegre. Manjericões precisam de muito sol para crescer.

Cristiano Fretta é professor de Português e Literatura.

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