OPINIÃO

Auditoria aponta solução para dívida de Minas Gerais com a União

Por Maria Lucia Fattorelli / Publicado em 29 de novembro de 2023
Auditoria aponta solução para dívida de Minas Gerais com a União

Foto: Clarissa Barçante/ ALMG

“Desde o refinanciamento em 1998 até o ano de 2021, o Estado de Minas Gerais pagou R$ 45,8 bilhões de juros e amortizações da dívida renegociada com a União, e ainda assim essa dívida explodiu, passando de R$ 14,9 bilhões para R$ 104 bilhões em 2021”

Foto: Clarissa Barçante/ ALMG

Conforme recente apresentação à Assembleia Legislativa de Minas Gerais, durante o Ciclo de Debates Endividamento de Minas Gerais, mostramos os resultados das investigações feitas pela Auditoria Cidadã da Dívida sobre a dívida do Estado de Minas Gerais, evidenciando que a referida dívida contém diversas ilegitimidades, a seguir resumidas:

O valor refinanciado pela União em 1998 (R$ 14,882 bilhões) partiu de estoque inflado por erros da política monetária federal (R$ 10,185 bilhões) e obscuros passivos dos bancos estaduais privatizados (Bemge e Credireal) e extinto (Minas Caixa), que representaram praticamente um terço do valor refinanciado (R$ 4,697 bilhões);

Apesar dos pagamentos regularmente feitos pelo Estado de Minas Gerais, o valor refinanciado passou a crescer de forma exponencial, devido à aplicação de atualização monetária diária automática, calculada com base no maior índice de atualização vigente no país (IGP-DI), além de juros de 7,5% ao ano, fazendo com que o estoque refinanciado se multiplicasse rapidamente, sem que o Estado recebesse qualquer contrapartida.

Cabe ressaltar que as Leis Complementares 148/2014 e 151/2015 recalcularam a dívida, aplicando-se a Taxa Selic até 1/1/2013 (o que fez pouca diferença, tendo em vista o elevado patamar da Taxa Selic naquele período), e, a partir de 1/1/2013, aplicou-se a atualização monetária pelo índice IPCA, acrescido dos juros de 4% ao ano.

Desde o refinanciamento em 1998 até o ano de 2021, o Estado de Minas Gerais pagou R$ 45,8 bilhões de juros e amortizações da dívida renegociada com a União, e ainda assim essa dívida explodiu, passando de R$ 14,9 bilhões para R$ 104 bilhões em 2021.

Dessa forma, Minas Gerais pagou a dívida mais de três vezes, e, mesmo assim, essa dívida se multiplicou por SETE vezes. Em valores atualizados pela inflação (IPCA) para 2022, a sangria fica ainda mais impressionante: o Estado pagou R$ 92,7 bilhões, cifra bem superior ao valor refinanciado originalmente atualizado pelo IPCA (R$ 63,5 bilhões) e, apesar disso, o estoque dessa dívida se encontrava em R$ 114 bilhões em 2021.

Devido a liminar obtida em 2018, o Estado de Minas Gerais interrompeu os pagamentos à União e essa dívida já alcança o patamar de cerca de R$ 160 bilhões, devido à contínua atualização monetária e imposição de juros sobre juros;

Diante desses graves questionamentos, é urgente recalcular essa chamada “dívida” desde o ponto de partida, quando foi feito o refinanciamento em 1998, porque claramente temos aí um sistema ilegítimo de multiplicação de dívida gerada sem contrapartida alguma.

Portanto, deve ser realizada a auditoria integral dessa dívida e refeitos os cálculos desde a origem, expurgando-se os ilegítimos passivos de bancos que foram empurrados para o estoque da dívida; a abusiva atualização calculada com base no IGP-DI e Selic, e os juros sobre juros cobrados de forma abusiva.

Adicionalmente, deve ser feito o encontro de contas, tendo em vista que, ao longo dos anos, enquanto a União cobrava essa “dívida” do Estado, a mesma União deixava de efetuar o devido ressarcimento previsto na Lei Kandir – Lei Complementar 87/1996 – acumulando uma perda líquida ao Estado de Minas Gerais no valor de R$ 135,67 bilhões até o ano de 2015 (valor atualizado pela Selic). Essa perda líquida foi calculada com base em documentos oficiais do Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz) e mencionada em relatório da Comissão Especial da ALMG.

Caso tivesse sido feito esse encontro de contas entre um crédito previsto em lei e devido ao Estado de Minas Gerais, o Estado seria credor perante a União! Em vez disso, no ano de 2020 o governador Zema abriu mão da quase totalidade desse crédito legal e concordou em receber apenas R$ 8,7 bilhões parcelados em 18 (dezoito) anos.

Essa situação é inadmissível e demanda completa auditoria dessa dívida, com participação social, trazendo à tona toda a verdade e refazendo os cálculos corretamente e com equilíbrio entre a chamada dívida e os créditos legalmente devidos ao Estado de Minas Gerais.

No entanto, quando o estoque dessa “dívida” ilegítima já alcança cerca de R$ 160 bilhões, o governador Romeu Zema vem insistindo em dizer que a única alternativa viável para o Estado seria aderir ao chamado “Regime de Recuperação Fiscal” (RRF), que representa graves ameaças ao próprio Estado e à sociedade, impondo perdas ao serviço público, desrespeitando o federalismo e perpetuando o Sistema da Dívida.

Segundo Zema, o RRF iria postergar os pagamentos da dívida à União, evitando-se o pagamento de R$ 18 bilhões no ano de 2024, e ameaça no sentido de que teria que atrasar o pagamento a servidores públicos e outros investimentos sociais, caso não fosse implementado o RRF.

A partir da importante mobilização do funcionalismo público em Minas Gerais e das evidências acerca das ilegitimidades dessa chamada dívida durante o Ciclo de Debates “Endividamento de Minas Gerais” realizado na ALMG e inúmeras entrevistas que mostraram também as inconsistências do RRF, outras propostas começaram a surgir, destacando-se a proposta apresentada pelo senador Rodrigo Pacheco ao presidente Lula, elevando o debate ao patamar nacional.

Apesar do mérito de descartar a proposta de RRF e mostrar que esse não seria o único caminho, como vinha sendo pregado pelo governador Zema, a alternativa apresentada pelo senador Rodrigo Pacheco também contém diversos equívocos, conforme denunciamos em entrevista à ALMG, pois desconhece as graves ilegitimidades da dívida de Minas com a União, em especial o fato de que essa dívida já foi paga várias vezes.

Além disso, Rodrigo Pacheco ignora a impressionante parcela de mais de R$ 125 bilhões de créditos da Lei Kandir que o governador Zema abriu mão, e ainda propõe que o crédito remanescente (de apenas R$ 8,7 bilhões) que seria recebido pelo Estado em 18 prestações seja devolvido à União.

Propôs ainda a federalização de empresas estatais mineiras; a entrega à União de créditos judiciais devidos por empresas mineradoras autoras de crimes históricos contra o meio ambiente e a sociedade mineira, além de descontos parciais de dívida. Em resumo, sua proposta significa simplesmente o pagamento parcial de uma dívida ilegítima, já paga, e a perda de patrimônio do Estado. Sem alterar as condições usurárias praticadas pela União contra o Estado de Minas Gerais, dentro de poucos anos a bola de neve crescerá outra vez.

Minas Gerais não pode abandonar sua tradição histórica de enfrentamento à subjugação colonial baseada na cobrança de valores ilegítimos.

É urgente retomar sua postura ativa, capaz de liderar a contestação política a este “Sistema da Dívida”, tendo em vista a importante força política nacional que o Estado de Minas Gerais possui, mas é preciso exercê-la, por meio de parlamentares estaduais e federais, abrindo-se ampla auditoria, com participação social, a fim de rever com responsabilidade e transparência esse processo desde a sua origem, sem se submeter à chantagem do insano RRF ou à perpetuação desse sistema acumulador de imensos danos financeiros e econômicos aos Estados.

Não há sentido algum para a alegada urgência em resolver a situação às pressas, tendo em vista que a parte credora, no caso a União, além de já haver recebido várias vezes o que refinanciou, possui em caixa cerca de R$ 1,7 trilhão, entre outros créditos de trilhões.

Antes de qualquer confissão, renegociação ou refinanciamento dessa chamada dívida, é preciso jogar luz nesse processo, trazer à tona toda a verdade por meio de uma auditoria integral, com a participação da sociedade civil, e podem contar com a dedicação voluntária da Auditoria Cidadã da Dívida.

Maria Lucia Fattorelli é coordenadora Nacional da Auditoria Cidadã da Dívida, membro da Comissão Brasileira Justiça e Paz (CBJP), organismo da CNBB; e coordenadora do Observatório de Finanças e Economia de Francisco e Clara da CBJP. Escreve mensalmente para o Extra Classe.

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