Por um resgate da formação do professor
Imagem: Detalhe de 'A ronda dos prisioneiros', de Vincent Van Gogh
Entre os anos de 2020 e 2021, durante o período mais crítico da pandemia de Sars-CoV-2, o filósofo italiano Giorgio Agamben escreveu uma série de textos no site da editora Quodlibet. A maioria destes pode ser encontrada compilada no livro Em que ponto estamos? A epidemia como política, lançado no Brasil pela editora n-1.
O principal argumento de Agamben sobre a disseminação do vírus dizia respeito ao fato de que, em que pese o aumento da contaminação pela covid-19 fosse uma realidade, os números apresentados pelo Consiglio Nazionale delle Ricerche, sobre a mortalidade relacionada ao vírus, o igualavam a outros, cujas medidas de prevenção não costumavam ser tão drásticas a ponto de os governantes optarem pelo isolamento social.
O que está em jogo aqui não é questionar algum tipo de negacionismo da parte do filósofo – o que, particularmente, não acredito – mas compreender o lugar ao qual sua argumentação, iniciada por esta provocação, deseja nos conduzir.
Leitor de Michel Foucault, Agamben escreveu sobre biopolítica que, por sua vez, trata do exercício de um poder sobre a população. Em outras palavras, de um biopoder, pois se exerce sobre os vivos.
Assim, a governamentalidade biopolítica diz respeito a um tipo de condução de condutas, uma relação de governo que teria como finalidade, segundo o próprio Foucault, muito mais o cuidado do que o uso da força para com a população que se governa.
Em sentido divergente, ao observar a biopolítica, o exercício do poder político, Agamben observa com naturalidade a presença do poder soberano na relação entre governantes e governados.
A incitação à violência como na produção de estados de exceção e da vida nua – da vida matável – na produção de corpos abandonados à sua própria sorte; marcados por características específicas cuja exposição à violência não costuma produzir nenhum tipo de comoção social. Corpos vitimados pela maquinaria do racismo de Estado assentado sob a lógica de um estado suicidário que normaliza a paz do terror, como diria Paul Virilio.
É nestes termos que Agamben propõe a leitura da pandemia como (bio)política. Momento em que, segundo ele, o mundo teria se tornado um grande laboratório para que se pudesse governar pela exceção; para que se pudesse testar aquilo que nunca pode ser testado – pelo menos em escala global: um mundo onde pessoas confinadas teriam suas relações mediadas por máquinas; onde o medo da morte (neste caso, do contágio) fez da vida biológica a mais importante forma de vida, sobrepondo-se às outras (social, política, afetiva, religiosa); onde o ser humano perdeu seu rosto, permanecendo sozinho – impossibilitado de reconhecer a si mesmo e reconhecer-se no outro.
Logo, o debate em torno da formação de professores também deve ser realizado sob perspectiva biopolítica, afinal se trata de uma política de formação para os docentes que passa por estratégias tanto de governo (das macropolíticas, em nível de governo federal), quanto de governamento – das micropolíticas, relacionadas à organização curricular dos cursos de Licenciatura no que tange à sua execução e às formas cotidianas em que a formação propriamente dita ocorrerá.
Realidade de certificações
O fato é que muito antes do acontecimento pandêmico, nas instituições de ensino, uma perigosa política de formação a distância já se desenhava. Perigosa porque apagava das universidades, principalmente todo e qualquer circuito socioafetivo e político em uma realidade onde o capital e as tendências neoliberais de acumulação de competências e habilidades esvaziam (a todo o vapor) a formação para tentar emplacar uma realidade de certificações cada vez mais precárias, insuficientes e alinhadas ao “mercado”. Desde aí, os profissionais já perdiam seus rostos.
Há algumas semanas o Ministério da Educação acertadamente resolveu terminar com a formação de professores 100% on-line.
Acertadamente porque é impossível conceber que profissionais que atuarão em escolas, educando crianças e jovens possam estar habilitados para o ofício da docência, tendo abdicado de uma formação coletiva, dialética, de conhecimento socializado e argumentação construída sob o crivo da crítica.
É preciso não apenas cuidar do professor, mas de sua formação, fazendo com que estes profissionais recuperem a atividade política e saibam que não estão sozinhos.
É preciso recuperar o rosto do professorado; que os docentes voltem a ter opiniões, a construir argumentos e se destaquem como produtores de conhecimento e pensamento crítico e que lhes seja garantida a liberdade para tal.
E que a escola possa ser a arena de produção intelectual e material dos professores, cada vez mais longe das plataformas gamificadas e de outras ferramentas on-line exageradamente e mal utilizadas; que não suprem o contato humano em sua formação e, tampouco, contribuem para suas subjetivações a partir de (re)descobertas em suas professoralidades.
José Luís Ferraro é doutor em Educação, bolsista produtividade do CNPq e professor universitário.