Novo Ensino Médio, neoliberalismo e a gramática do fascismo
Foto: Fernando Frazão/ Agência Brasil
Desde o início do governo Lula 3, é notável a pressão sobre o Ministério da Educação (MEC) para a imediata revogação do projeto ultraneoliberal denominado Novo Ensino Médio (NEM), consubstanciado na Base Nacional Curricular Comum (BNCC).
O pedido de revogação fundamenta-se no apartheid educacional entre escolas públicas e privadas, que acentuou as diferenças educacionais entre essas duas realidades.
A principal justificativa apresentada como benéfica pelos defensores dessa política educacional é a inserção de 1,2 mil horas de itinerário ou percurso formativo, permitindo aos estudantes escolherem as temáticas nas quais desejam aprofundar conhecimentos.
Trata-se da flexibilização do ensino proporcionada por essa reformulação curricular, conferindo aos alunos certa autonomia sob a justificativa da necessidade de torná-los autônomos e protagonistas de suas aprendizagens. Isso, no entanto, está associado à construção do projeto de vida, disciplina que tem excluído do currículo disciplinas importantes como Sociologia e Filosofia.
Chama a atenção a utilização proposital de uma linguagem própria do neoliberalismo, com o emprego dos termos liberdade, flexibilização, autonomia e protagonismo em relação aos alunos.
Acrescenta-se a isso a expressão “projeto de vida”, que, em sua problematização como disciplina, prioriza o utilitarismo, reduzindo a escola a uma agência de preparação para o mercado de trabalho e deprecia a vida, reduzindo-a a um objeto a serviço do capital humano.
Linguagem coaching
No âmbito dos projetos de vida do NEM, há uma verdadeira doutrinação ideológica pela difusão da racionalidade neoliberal por meio da educação.
São abordados temas que incentivam crianças e jovens a não adiarem a vida adulta, atribuindo-lhes a necessidade de agir rapidamente, tomar decisões precoces para evitar uma adultez sem sucesso e frustrada.
Há a promoção do “empresariamento de si” pela necessidade dos estudantes desenvolverem habilidades como autoconhecimento e autogestão – termos rebuscados pelo melhor do vocabulário coaching para referir-se ao conhecimento de si e à tomada de decisões.
A ideia de consciência social é reduzida à empatia em um cenário de ausência de questões críticas e reflexivas, como o debate de problemas socioeconômicos e estruturais, típicos do neoliberalismo que nega as estruturas para valorizar o indivíduo.
O “projeto de vida” do NEM é despolitizante, centrado no “eu”, e voltado ao desenvolvimento de competências socioemocionais, inteligência emocional e soft skills: exatamente como demandam as exigências mercadológicas.
É aterrador pensar o quanto essa linguagem neoliberal, tomada como um dispositivo de captura dos indivíduos, investe na produção do Homo oeconomicus, a subjetividade neoliberal.
É a partir desse discurso que se percebe, mais uma vez, a aproximação histórica entre o neoliberalismo e o fascismo, podendo a gramática neoliberal ser concebida como uma gramática fascista.
“A ideia de consciência social é reduzida à empatia em um cenário de ausência de questões críticas e reflexivas, como o debate de problemas socioeconômicos e estruturais, típicos do neoliberalismo que nega as estruturas para valorizar o indivíduo”
O neoliberalismo na história nunca se afirmou sozinho. Para sua efetuação, sempre precisou da existência de um Estado militarizado ou policial, justamente para que forças armadas e polícias pudessem garantir os interesses e a continuidade da expansão da burguesia.
Com Friedrich von Hayek e Milton Friedman, a proteção da propriedade privada é levada ao limite, percebendo qualquer intervenção estatal mínima na dinâmica do mercado como uma grande ameaça à liberdade.
Isso, no contexto do estado de exceção em que vivemos, deve ser protegido a qualquer custo, mesmo que seja pela militarização da vida cotidiana.
Não à toa, houve a tentativa de militarizar a educação pública brasileira com o Programa Nacional das Escolas Cívico-Militares (PECIM).
Viabilizar o Novo Ensino Médio é normalizar a violência como política no interior do Estado securitário, onde – por razões de segurança – tudo se pode para defender a liberdade (de alguns).
Ao prevalecer o neoliberalismo e sua gramática fascista, se percebe a defesa intransigente das liberdades individuais e em relação aos interesses estatais, pois o empreendimento individual é justificado como benéfico por alocar, em última análise, recursos econômicos à economia. Deturpa-se, assim, ideia de agir em nome do bem comum – aliás, a própria ideia de comum é esvanecida com o fortalecimento do discurso neoliberal-fascista.
A questão é que o NEM, ao oferecer um ensino precário aos filhos da classe trabalhadora e despolitizá-los, apela para uma estratégia que está no cerne do conceito do fascismo originário, ao utilizar a educação e suas formas de violência simbólica para arrefecer os movimentos de contraconduta, as sublevações ou algum tipo de revolução social.
A precarização da formação somada à morte do pensamento crítico são as armas do neoliberalismo-fascista que utiliza a educação para controlar a massa, defendendo não apenas os interesses burgueses, mas das corporações que necessitam de uma força de trabalho cada vez mais precarizada para que se possa gerar mais lucro.
Gramática do fascismo
A gramática do fascismo relacionada ao NEM como política educacional neoliberal se evidencia quando representantes do MEC insistem em sentar-se à mesa com membros de organizações/fundações ligadas às grandes corporações para que sejam elas as definidoras dos rumos da educação no país.
A relação é uma espécie de consultoria que desfaz a escola como o espaço da formação cidadã, aviltando-a e transformando-a em qualquer coisa, desde que certifique, mesmo que precariamente.
São essas corporações que insistem em preservar o Novo Ensino Médio para manter em curso a agenda neoliberal, cuja racionalidade se serve dos processos educacionais para perpetuar-se, e do próprio fascismo – que lhes permite garantir seus poderes institucionais em uma fragilizada (pós)democracia na qual o poder econômico cada vez mais toma de assalto o poder político.
Assim, o NEM, além de ser uma afronta ao Estado de Direito por promover exclusão e desigualdade, nada mais é do que uma das formas de reação encontrada pelo grande capital apoiado pela burguesia diante da ameaça de organização da classe trabalhadora.
Nesse sentido, é preciso avançar no debate e destituir essas organizações/fundações das referências da educação brasileira.
Urge atender o anseio da comunidade acadêmica da área educacional e das comunidades escolares da rede pública de ensino, agentes diretamente interessados nesta revogação.
José Luís Ferraro é doutor em Educação, bolsista produtividade do CNPq e professor universitário.