OPINIÃO

Que as almas dos jesuítas protejam Francisco

Por Moisés Mendes / Publicado em 15 de fevereiro de 2024

Foto: Vatican Media

Foto: Vatican Media

Um dia depois do encontro do papa Francisco com Javier Milei, no dia 12 de fevereiro, no Vaticano, um grupo de padres argentinos divulgou uma carta pública em defesa dos pobres e contra a repressão e a índole autoritária e destruidora do presidente do país.

O papa recebia o fascista com uma acolhida que surpreendeu muita gente, enquanto os padres pediam que Milei reavaliasse a política de descaso com o povo, com direitos e com a Constituição.

“É tempo de conversão e de mudar de rumo”, diz a carta, que defende o direito de expressão que Milei tenta amordaçar, denuncia a perseguição a sindicatos e movimentos sociais e pede a reconsideração de medidas contra os mais pobres.

Francisco conhece bem a bravura do ativismo religioso. O papa foi um dia o padre jesuíta Jorge Mario Bergoglio. Na mesma Buenos Aires dos padres da organização ‘Curas en la opción por los pobres’, que fazem o que a própria igreja progressista já definiu, no século 20, como trabalho eclesial em comunidades de base.

Bergoglio conheceu de perto essa militância quando foi o cura líder dos jesuítas no país, nos anos da ditadura. Dois padres que atuavam em comunidades pobres e miseráveis, o húngaro French Jalics e o uruguaio Orlando Yorio, acabaram presos.

Foi em 1976, no auge da perseguição que assassinou mais de 30 mil inimigos do regime. Os religiosos contaram quando foram libertados, cinco meses depois, que sofreram torturas.

Quando Bergoglio virou papa, em março de 2013, disseminaram-se informações sobre possíveis omissões do superior dos sacerdotes.

Mesmo que as controvérsias tenham caminhado na direção da absolvição de Bergoglio, o próprio papa admitiu que poderia ter feito mais pelos padres.

French Jalics assegurou depois que não foi entregue aos ditadores pelo chefe jesuíta. Orlando Yorio chegou a dizer que haviam sido abandonados por Bergoglio. Ambos já morreram.

Relatos que vão e volta, com muitas versões conflitantes, não encerram completamente a história dos padres torturados. E agora estamos diante de mais um fato controverso, envolvendo o argentino que se afirma como o mais progressista de todos os papas. É mais um paradoxo.

Perguntas incômodas são refeitas. Como Francisco pode ter sido omisso com os padres presos durante a ditadura, se o seu pontificado mostra um líder determinado a enfrentar preconceitos e poderosos do mundo todo?

Por que Francisco foi tão sorridente com Milei, a ponto de perguntar até sobre mudança no corte do cabelo do fascista? Será que precisava ter sido tão cordial e expor essa cordialidade como algo que devesse ser visto?

Francisco cumpriu com Milei a liturgia do poder, que impõe protocolos e concessões a todo tipo de governo. O papa governa a igreja e precisa receber até quem o ataca.

Naquele encontro com Milei, festejava com o presidente a canonização de beata María Antonia de Paz e Figueroa, conhecida como Mama Antula, a primeira santa do país em que os dois nasceram.

Poderia ter sido menos efusivo com o visitante? Deveria estar tão alegre, depois de ter sido atacado por Milei, por várias vezes, como imbecil e representante, não de Deus, mas do demônio?

Milei encontrou-se com o papa num momento complicado, em que é levada a sério a possibilidade de não conduzir o governo até o fim. Vem sendo abandonado por parceiros políticos e sua capacidade de gestão já é vista com desconfiança pela elite econômica.

Foi fragilizado por quatro manifestações dos sindicatos e dos movimentos sociais. Não tem o apoio incondicional da grande imprensa e pode ser obrigado a se submeter à tutela absoluta do ex-presidente Mauricio Macri no governo e da velha direita macrista no parlamento.

O papa socorreu, com sua cordialidade, um extremista em situação difícil. Um adorador de ditadores e torturadores que foi ao Vaticano pedir socorro de quem acusava de ser cúmplice do diabo.

Enquanto isso, em Buenos Aires, os padres que estão ao lado dos pobres redigiam uma carta pública ao sujeito que ensaia a implantação de uma ditadura.

Outras perguntas são inquietantes. A divulgação da carta um dia depois da visita teria sido um acaso?

Por que o papa, que nunca mais voltou à Argentina desde que chegou ao Vaticano, prometeu a Milei que irá finalmente visitar o país esse ano?

Por que uma visita agora à Argentina dominada pela extrema direita, com a ameaça de extinção de direitos e diante do risco real de mais um período de repressão e perseguições?

Ninguém imagina que Francisco possa ir a Buenos Aires para dar à sua presença a ideia de que desafia Milei e está ao lado do povo. Temem que a visita represente uma conciliação e favoreça o agressor?

Que as almas dos padres French Jalics e Orlando Yorio protejam Francisco, para que continue sendo visto como uma figura respeitada em meio à degradação das lideranças e das instituições multilaterais.

Comentários