OPINIÃO

As prisões e a cortina de fumaça

Por Marcos Rolim / Publicado em 11 de março de 2024

As prisões e a cortina de fumaça

Foto: Marcello Casal Jr. / Agência Brasil

Foto: Marcello Casal Jr. / Agência Brasil

“O sistema federal, entretanto, pode ter concorrido para a nacionalização do Comando Vermelho (CV) e do Primeiro Comando da Capital (PCC) que, antes de 2006, ano de inauguração da primeira prisão federal em Catanduvas (PR), não possuíam a dimensão nacional de hoje”

A fuga de dois presos da Penitenciária Federal de Mossoró, no Rio Grande do Norte, ganhou os noticiários e mobilizou governo e oposição. Para todos os efeitos, o episódio aponta para uma urgência nacional. No Congresso, a oposição passou a responsabilizar o Executivo pelo fato, cobrando medidas “duras” na execução penal e pretendendo ouvir o ministro da Justiça. O governo anunciou contratação de novos policiais penais, reforço na segurança e construção de muralhas em torno das prisões federais.

Pois bem, estamos diante de uma cortina de fumaça na qual o fato é tratado como parte da disputa política de um país cindido pela radicalização. É preciso sair desse ambiente tóxico e tratar do que importa.

Primeiro, fugas de prisões de segurança máxima não são comuns, mas ocorrem em todo o mundo. Em 2015, dois presos da Clinton Correctional Facility, do estado de Nova Iorque, nos EUA, considerada inexpugnável desde sua inauguração em 1865, fugiram pelos bueiros, deixando um bilhete: “Tenham um bom dia”. Não ocorreu aos norte-americanos convocar um ministro para esclarecimentos. Na antiga prisão da Ilha de Alcatraz, considerada a seu tempo uma das mais seguras do mundo, três presos conseguiram fugir em junho de 1962, cavando, durante meses, um buraco com colher e usando uma balsa feita com capas de chuva. Há muitas outras histórias do tipo que, em situações políticas normais, não se transformam em objeto de disputas, mas oferecem lições e promovem ajustes.

Segundo, deveríamos estar discutindo o sistema prisional federal, onde se aplica o Regime Disciplinar Diferenciado (RDD), uma forma especial de encarceramento em que os presos podem ficar isolados por muitos anos. Eles ficam em celas individuais monitoradas por câmeras. As visitas são limitadas e monitoradas e ocorrem sem contato físico, atrás de um vidro. Em 2017, uma portaria proibiu as visitas íntimas no sistema federal; em 2019, outra portaria proibiu as visitas sociais. Como as cinco prisões federais estão no meio do nada e em estados diversos da origem dos apenados, muitos familiares sequer conseguem se deslocar. O que era para ser um isolamento provisório, de até um ano, virou um sistema de execução penal que contraria princípios da Constituição e tratados internacionais, como as Regras de Mandela, que consideram como “confinamento solitário prolongado” mais de 15 dias, proibindo essa prática explicitamente (regras 40 e 43). Estranhamente, o tema não foi julgado pelo STF (ADI 4.162 de 2008, da OAB). O RDD, lembrando, foi uma criação ilegal dos governos tucanos em São Paulo até que Lula encaminhou ao Congresso, em seu primeiro governo, projeto alterando a Lei de Execução Penal (LEP), oficializando o novo regime.

Quais os resultados produzidos pelo sistema que custa R$ 40 mil/mês por preso, enquanto o custo mensal nos estados fica abaixo dos R$ 3 mil, em média? É possível que ele tenha um ponto positivo: nos estados, os presos faccionados têm receio de serem transferidos para um presídio federal, o que pode explicar parte do fenômeno de redução de motins e parte da redução das taxas de homicídio entre facções. O sistema federal, entretanto, pode ter concorrido para a nacionalização do Comando Vermelho (CV) e do Primeiro Comando da Capital (PCC) que, antes de 2006, ano de inauguração da primeira prisão federal em Catanduvas (PR), não possuíam a dimensão nacional de hoje. O isolamento de lideranças de facções pode cumprir um papel, mas o fato é que isso não afeta o modelo do negócio, porque o lugar do líder de facção deslocado do seu estado para o sistema federal não ficará vago. Então, não estamos tratando de resposta efetiva, mas de uma opção de gestão prisional. No mais, é preciso considerar que o RDD não recupera e que suas condições de isolamento são a causa de vários suicídios nas prisões federais. Levantamento realizado pela Defensoria Pública da União, em 2019, encontrou que quase todos os presos do sistema federal tinham problemas de saúde mental. Em Catanduvas, dos 153 presos, 138 faziam uso de medicação “tarja preta”.

Antes que algum gênio sustente que presos perigosos não possuem recuperação possível, preciso informar que, há mais de 40 anos, um dos mais amplos consensos na Criminologia contemporânea é a de que presos considerados de alto risco são, precisamente, os que melhor respondem a abordagens corretas de tratamento penal, como, por exemplo, o modelo RNR (Risk, Need, Responsivity), que seguem desconhecidas no Brasil. Pelo contrário, de maneira contraintuitiva, presos considerados de baixo risco costumam responder mal às iniciativas de tratamento penal, e submetê-los a tratamentos intensivos, aliás, aumenta os indicadores de reincidência (ver, por exemplo: GENDREAU, Paul; ROSS, Robert R. Revivification of rehabilitation: Evidence from the 1980s, Justice Quarterly, v.4, n.3, p. 349-407, 1987).

Se o governo e o Congresso estivessem a fim de discutir sobre o sistema penitenciário nacional, poderiam começar pelo alinhamento das medidas necessárias para superar a realidade definida pelo STF como “estado de coisas inconstitucional”, mas não. Na ausência de um projeto de reforma penitenciária, sem força ou vontade de questionar a guerra contra as drogas, a política mais amplamente fracassada do mundo, e dedicados à gestão política do medo, governo e oposição se preparam para apertar, mais uma vez, a tecla de sempre: mais restrições na execução penal e mais gente empilhada em prisões. Em síntese, a imaginação segue fora do poder. A ciência também.

Marcos Rolim é jornalista, doutor em Sociologia. Escreve mensalmente para o jornal Extra Classe.

 

 

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