Desqualificar educação pública é meta das reformas educacionais
Foto: Elza Fiuza/Agência Brasil
Foto: Elza Fiuza/Agência Brasil
A educação básica no Brasil apresenta regressão e piora de vários indicadores. Esta condição do segmento não revela apenas uma crise e uma disputa pelo controle pedagógico, mas evidencia um projeto destrutivo. O país não somente abdicou de universalizar com qualidade social a formação das crianças e jovens – como prevê a Constituição Federal –, mas ataca a educação pública e implementa reformas educacionais de natureza privatista, financista e instrumental.
Desqualificar e privatizar a educação básica pública estatal, responsável por mais de 84,2% das matrículas no país, parece ser o objetivo principal das reformas educacionais em implementação nas escolas desde 2017, com as Bases Nacionais Comuns Curriculares (BNCCs) – da educação infantil e ensino fundamental, do Novo Ensino Médio –, bem como as BNCs – Formação Inicial e Continuada de Professores.
Educação Básica piora com as reformas educacionais
Para justificar as sucessivas reformas neoliberais, a educação pública foi sendo gradativamente atacada, desqualificada e deslegitimada junto à sociedade. Existem várias estratégias para atingir esta finalidade, como: sucatear mediante redução dos investimentos; destruir a carreira docente com contratos precários e temporários; descontinuar as políticas educacionais de estado; críticas e ataques sistemáticos a educação pública; negação do direito à educação aos estudantes; descumprimento dos Plano Nacional de Educação (PNE) e dos planos estaduais e municipais, entre outras.
Entre tantas estratégias praticadas, a educação pública sofre críticas sistemáticas e uma campanha constante de desqualificação protagonizadas pelos atores privados e diversos meios de comunicação (Jornais, TVs, Canais de Assinaturas, etc).
A título de exemplo, vejamos o que a pesquisadora da Faculdade de Educação da Unicamp, Thais Rodrigues Marin, identificou ao analisar 1.197 artigos de opinião e 145 editoriais publicados somente pelo Jornal Folha de São Paulo no período de 15 anos (2005–2020).
Na análise destas publicações, o que mais surpreendeu a educadora foi encontrar nos textos uma postura reiterada de desqualificação do sistema brasileiro de educação pública, com ataques que atingiram, também, os professores dessa rede pública. São recorrentes as expressões exageradamente negativas, catastróficas e mesmo grosseiras para caracterizar a educação pública, tais como “tragédia”, “desastre’, “fracasso” e “mediocridade’.
A pesquisa identificou e destacou seis narrativas que mais se evidenciaram. A primeira delas – “a mais expressiva”, é a da desqualificação da educação pública de modo geral no Brasil e a consequente necessidade de reformá-la. “Esse ideário de crise da má qualidade respalda as iniciativas de reforma da educação, ou reforma empresarial da educação, que temos hoje”.
A segunda narrativa, a do financiamento, defendendo não faltar recursos para a educação básica, mas faltar eficiência na gestão do Estado. A terceira, a de desqualificação dos professores da escola pública, descrevendo-os como acomodados, malformados e corporativistas. “Esse discurso coloca o professor como inimigo e nega sua condição de trabalhador”.
A avaliação educacional relacionada a mecanismos de vigilância do trabalho do professor e de mensuração em larga escala configura a quarta narrativa identificada na pesquisa. “Isso é reflexo do modo de funcionamento corporativo e meritocrático, de mensurar o trabalho com métricas, para premiar ou punir. A qualidade da educação passa a significar posições em rankings, e o professor é responsabilizado por esses resultados, desconsiderando-se problemas estruturais que também afetam o processo educativo”, explica Marin
A quinta narrativa versa sobre as parcerias educacionais, recorrente nos artigos, tendo relação “direta com a privatização” e fica até mais fácil de entender, porque coloca os atores não estatais como supostamente mais capazes para oferecer soluções e diz como eles são importantes para que a política educacional seja de melhor qualidade”
A sexta e última narrativa descrita pela pesquisadora trata das finalidades educacionais. “Essa narrativa resume-se a colocar na conta da escola a superação das desigualdades sociais e o desenvolvimento econômico, defendendo que a suposta má qualidade da educação seria a causa da perpetuação de desigualdades e do arrefecimento da economia. Isso é a teoria do capital humano alinhada ao discurso neoliberal”.
Tais narrativas endossam, legitimam e consolidam uma opinião pública contrária a oferta pública e favorável aos processos e práticas privatistas. Com a repetição, diz a pesquisadora, essas narrativas vão se tornando hegemônicas na sociedade e se naturalizando. A sociedade fica inerte e não reage na defesa da oferta de uma educação pública com qualidade que historicamente era a melhor no país, como ainda são as Universidades e Institutos Federais.
Por fim, a pesquisadora lembra que a educação escolar no Brasil já nasceu privatizada por intermédio da Companhia de Jesus, vinculada a igreja católica. Sempre houve um ator não estatal na política educacional brasileira. Porém, desde os anos de 1990, o Estado brasileiro vem sofrendo um processo de reestruturação e enxugamento e vem se abrindo a novos atores, que passam a participar, também, da política educacional”, descreve a pesquisadora.
Quando se examina a interferência da iniciativa privada na escola básica, nem sempre ficam inteiramente explícitos os conceitos e os princípios envolvidos na análise. Para o professor Vitor Henrique Paro (USP), a interferência do privado na escola básica – especialmente por meio dos pacotes e “sistemas” de ensino comercializados pela iniciativa, sonega dos educadores escolares o direito (e o dever) de planejarem, organizarem e executarem a aprendizagem em estreita colaboração com seus colegas e educandos. Ao invadir, assim, o espaço público, o privado não só reduz a universalidade da cidadania, mas, também, solapa o terreno em que se constrói o educativo.
Indicadores apontam retrocessos em vários níveis e modalidades
Conforme o Censo da Educação Básica de 2023 e a Pesquisa por Amostra de Domicílios (PNAD da Educação 2023) publicada em 22 de março/2024, a educação básica apresenta piora e retrocessos de indicadores em vários níveis e modalidades. Em 2023, registraram‐se 47,3 milhões de matrículas nas 178,5 mil escolas de educação básica no Brasil, cerca de 77 mil matrículas a menos em comparação com o ano de 2022. Essa leve queda é reflexo do recuo de 1,3% observado no último ano na matrícula da rede pública, que passou de 38,4 milhões em 2022 para 37,9 milhões em 2023, e o aumento de 4,7% das matrículas da rede privada. A proporção de matrículas no ensino fundamental cai pelo terceiro ano seguido, sinalizando uma tendência estrutural.
O censo revela que foram registradas 26,1 milhões de matrículas no ensino fundamental em 2023. Esse valor é 3,0% menor do que o registrado para o ano de 2019. Nos últimos cinco anos, essa redução foi mais acentuada nos anos iniciais (3,9%) do que nos anos finais do ensino fundamental (1,9%). O Ensino Médio apresentou 7,7 milhões de matrículas no ensino médio, uma redução de 2,4% no último ano.
Já na Educação de Jovens e Adultos (EJA), o número de matrículas diminuiu 20,9% entre 2019 e 2023 chegando a 2,6 milhões em 2023. A queda no último ano foi de 6,7%, ocorrendo de forma semelhante nas etapas de nível fundamental e de nível médio, que apresentaram redução de 6,9% e 6,3%, respectivamente.
Segundo a PNAD de Educação também de 2023, o Brasil tem 48,5 milhões de pessoas de 15 a 29 anos de idade e 15,3% deles estavam ocupadas e estudando, 19,8% não estavam ocupadas nem estudando, 25,5% não estavam ocupadas, porém estudavam e 39,4% estavam ocupadas e não estudavam.
A Pnad revelou que 9 milhões de estudantes não conseguiram terminar o Ensino Médio no Brasil, em 2023. Destes, 58,1% são homens e 41,9% são mulheres. A discrepância é maior entre a população negra. Cerca de 71,6% dos alunos que desistiram de estudar são pretos ou pardos, enquanto o cenário é de 27,4% entre os brancos. A mesma pesquisa mostra, também, que o Brasil, o analfabetismo resiste, ainda tem 9,3 milhões de pessoas analfabetas com 15 anos ou mais de idade.
Somente a modalidade da Educação Profissional (EP) apresenta indicadores de expansão, chegando a 2,4 milhão de matrículas em 2023, um aumento de 26,1% em relação a 2019. Porém, a EJA do ensino médio que teve um discreto declínio; a modalidade com maior incremento relativo foi a dos cursos de formação inicial e continuada ou de qualificação profissional (FIC), que apesar do baixo número de matrículas em termos absolutos, cresceu 71,9% no último ano.
Porém, as matrículas da EP estão principalmente concentradas na rede privada, representando 44,4%, seguida das redes estadual e federal, com 38,2% e 13,7%, respectivamente. De todas as etapas de ensino, a educação profissional é a que detém o maior número de matrículas na rede federal, alcançando 331.037 em 2023. A mesma rede apresenta o maior número de matrículas da educação profissional na zona rural (no campo).
Ainda, segundo dados da PNAD da Educação 2023, quase 400 mil crianças e jovens de 6 a 14 anos não estavam frequentando a escola em 2023. O número demonstra que 5,4% dos alunos abandonaram a escola no último ano. A parcela de crianças na escola começou a cair a partir de 2019. Daquele ano para 2022, o volume de alunos foi de 97,1% para 95,2%, refletindo, até então, os efeitos da pandemia de Covid-19, das reformas educacionais, da queda dos investimentos e da precarização das escolas.
Cabe lembrar que a educação pública há três décadas tinha suas vagas disputadas pelas juventudes que esperavam conseguir trabalho e mobilidade social com base em sua escolarização, hoje precisa oferecer recursos financeiros aos estudantes, como os programas Pé-de-Meia (MEC), Todo Jovem na Escola (SEDUC-RS) e Primeira Chance (Paraíba) para que a evasão não seja tão massiva. Essa mudança de posição da educação escolar, alerta Caroline Catini (UNICAMP), impõe a análise de outras contradições do sentido da escolarização, que não fique presa no argumento da garantia da permanência de estudantes mais pobres e que abandonariam a escola sem tal incentivo financeiro.
A ótica da financeirização e da privatização
Da ótica do empresariado e investidores, como comandam a reestruturação da forma e função da educação escolar, além de uma fonte direta de rendimentos, por meio de investimentos em ativos reais e financeiros e do controle sobre o orçamento estatal, a educação, antes de tudo, tende a ser reduzida a um conjunto de dispositivos voltados à divisão, fragmentação, seleção, discriminação, e controle sobre a juventude, seja na condição de trabalhadores a serem explorados, de consumidores a serem condicionados, ou de uma massa endividada e enredada nas teias da financeirização.
Não por acaso, prossegue a pesquisadora Catini, a educação financeira é componente curricular da BNCC, em vigor desde 2017, e em 2021 foi criada uma comissão para formar professores e professoras para abordar a temática em sala de aula. Além de calcular, poupar e investir, a educação financeira visa ensinar um conjunto de comportamentos para que os jovens façam escolhas mais “conscientes”. De fato, a educação financeira está ganhando cada vez mais centralidade nos currículos dos estados desde a educação infantil. Em São Paulo, por exemplo, desde o meio do ano de 2023, todas as disciplinas eletivas criadas com a Reforma do Ensino Médio foram substituídas por aulas de educação financeira. Chegaram a ser criadas mais de 1.500 disciplinas nos primeiros anos de implementação da reforma. O programa pretende atender 2,5 milhões de jovens, os mais pobres, do universo de quase 8 milhões de estudantes de ensino médio.
A educação superior seguiu esta lógica da privatização e mercantilização, com mais de 2/3 das matrículas pagas, onde cinco grupos educacionais respondem por 2,5 milhões de matrículas, a maioria na modalidade EAD. Esta lógica está sendo desenvolvida e aplicada à Educação Básica. É a lógica mercantil e financista do capitalismo adentrando os espaços de formação acadêmica e escolar. Trata-se da destruição da educação pública enquanto direito e espaço comum público.
Se não tomarmos consciência e reagirmos, a educação pública será destruída pela lógica do Empreendedorismo na escola, financeirização da educação e conformismo da sociedade e do “protagonismo juvenil”.
Gabriel Grabowski é professor, pesquisador e escreve mensalmente para o jornal Extra Classe.