A filha de Gabrielli da Silva e as joias de Eliane Cantanhêde
Fotos: Reprodução/GloboNews/Redes Sociais
Fotos: Reprodução/GloboNews/Redes Sociais
A analogia é uma das mais maltratadas invenções da humanidade. Porque muitas vezes se presta a comparar o que não é comparável. Como fez agora a jornalista Eliane Cantanhêde, comentarista da GloboNews e do Estadão.
Eliane tentou se comparar às pessoas que perderam tudo na tragédia do Rio Grande do Sul e disse em comentário na TV:
“Você se põe na posição dessas pessoas que perderam tudo. Roubaram as minhas joias no Natal de 2023, foi doloridíssimo. Eu fico imaginando quem perdeu a casa, quem deu um duro danado para comprar uma geladeira, um fogão, uma cama, e não tem mais nada”.
Na analogia de Eliane Cantanhêde, é preciso que ela apresente seu drama, que foi doloridíssimo, para que possa refletir sobre o drama dos outros. E assim fazer com que seus telespectadores possam calcular o sentimento de perda dos gaúchos.
Tentou estabelecer equivalências para o que não é comparável. Mas é pior: tentou dizer que a sua dor pela perda de joias pode ser usada para estabelecer alguma simetria com a dor dos que perderam vidas.
Eliane perdeu ouros e diamantes. Gabrielli Rodrigues da Silva perdeu a filha Agnes, de sete meses. A criança caiu do barco na água, em Canoas, durante o resgate da família. Gabrielli tem 24 anos. Agnes era irmã gêmea de Ágata, que sobreviveu.
No Dia das Mães, acolhida num abrigo, Gabrielli escreveu nas redes sociais:
“Como vou continuar caminhando sem me culpar por tudo? Sei que ninguém teve culpa! NINGUÉM! muito menos as pessoas que se disponibilizaram em nos salvar. A todos que estavam dando a vida para nos salvar, toda minha gratidão. Vocês são meus heróis “.
Esse é o gesto de desespero e grandeza de Gabrielli diante da fala pequena de Eliane. A tentativa de comparar as joias furtadas com a perda de vidas é o que, na síntese mais usual nesses casos, se chama de coisa sem noção. É mais do que isso.
É a elite branca, com casa boa, bem remunerada, posta acima dos outros pela pretensa capacidade de refletir sobre a vida dos pobres, dizendo o seguinte: eu me esforço para descer um pouco desse pedestal e me equiparar aos que estão abaixo de mim.
Mas, antes, o sofrimento exposto deve ser o deles, o sofrimento dos superiores. É o que eles fazem sempre. Acham que, por desprendimento e empatia, são capazes de dizer que sentem o sofrimento alheio. O sofrimento de Gabrielli e das Marias, Joanas, Teresas, Célias, Jussaras seria medido com esse tipo de comparação, a partir do drama da classe média branca e bem nascida.
Eliane Cantanhêde não cometeu apenas uma gafe. Nos ofereceu mais uma prova do que é o jornalismo da grande imprensa diante de dramas de pessoas que já têm muito pouco e perdem o pouco que têm.
Folha e Estadão, principalmente, e Globo um pouco menos, têm massacrado os esforços do governo federal para socorrer os que não terão mais o direito de pensar em voltar para casa. Porque a casa não existe mais para milhares de Gabrielles.
Perderam filhos, irmãs, pais, esposas, tias, amigos, vizinhos e a casa. Perderam TV, computador, sofás, camas, colchões. Perderam seus bichos.
E são vistos pelos jornalões, entre os quais o Estadão de Eliane Cantanhêde, como alguém que, por não ter nada e precisar de ajuda, pode pôr em risco o arcabouço fiscal.
No dia seguinte ao da terceira visita de Lula ao Estado, para anunciar um conjunto de medidas de socorro, os três jornais deram a mesma manchete: o abalo na bolsa e no mercado financeiro provocado pela troca de comando na Petrobras.
Um dia depois da visita de Lula, os jornalões esconderam a foto do presidente com as famílias abrigadas em São Leopoldo e deram na capa uma manchete sob encomenda dos homens do mercado financeiro.
Entre os R$ 5,1 mil anunciados como ajuda de emergência a cada família e os bilhões dos acionistas da Petrobras, os jornalões optaram pelos bilhões.
Nada surpreende. Eliane Cantanhêde escreveu, em 10 de maio, dias depois dos primeiros esforços federais para liberação de recursos para o Rio Grande do Sul, que agora o ministro Fernando Haddad estava na situação que mais desejava.
A jornalista publicou essa frase, com crueldade: “Haddad está livre, leve e solto para gastar, como Lula gosta”. Salvar vidas era, segundo a madame que perdeu as joias, ficar leve e solto para gastar.
É o acinte do jornalismo que defende o mercado e ofende a mobilização de todas as áreas para cuidar de emergências e articular um plano de salvação de um Estado destruído.
Eliane Cantanhêde tem outras gafes famosas, como a declaração em vídeo, numa convenção do PSDB, de que os tucanos paulistas estavam indo ao encontro do povo, da massa, mas uma “massa cheirosa”.
Essa agora das joias é a sua gafe mais sincera, a que mais expressa a índole dos jornalistas adorados pela extrema direita. Eliane é uma joia, uma pedra rara admirada por essa gente. É a esmeralda da grande imprensa.
Moisés Mendes é jornalista e escreve quinzenalmente para o Extra Classe