OPINIÃO

PEC 45, o Brasil em direção ao passado

Por Marcos Rolim / Publicado em 21 de maio de 2024
PEC 45, o Brasil em direção ao passado

Foto: Fellipe Sampaio/SCO/STF

PEC do encarceramento: “A mudança do tipo reduziria a máquina de encarceramento, que empilha jovens
pobres e negros nas prisões e daria às polícias a chance de saírem da ineficiente
perseguição ao tráfico no varejo para uma repressão focada no atacado”

Foto: Fellipe Sampaio/SCO/STF

O Senado aprovou, por ampla maioria, a Proposta de Emenda à Constituição (PEC 45/2023) que criminaliza a posse e o porte de qualquer quantidade de droga ilegal. A matéria terá que ser ainda apreciada pela Câmara. A PEC 45 é uma resposta ao Supremo Tribunal Federal (STF), que, provocado sobre o tema, havia iniciado a votação sobre a constitucionalidade do artigo 28 da Lei 11.343/2006

Esse artigo da Lei Antidrogas é o que define as condutas puníveis por consumo, a saber: “adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas (…)”. Já o artigo 33 da mesma Lei define o que é tráfico, com os seguintes verbos: “Importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda, oferecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar, entregar a consumo ou fornecer drogas, ainda que gratuitamente (…)”.

Assim, se alguém for condenado pelo art. 28 (consumo), o que de mais grave poderá lhe ocorrer será a prestação de serviço comunitário, mas quem for condenado pelo art. 33 (tráfico) poderá pegar até 15 anos de prisão por crime hediondo. Como se pode reparar nos caputs dos artigos citados, eles possuem cinco condutas comuns. Na verdade, se considerarmos as hipóteses do § 1º do art. 28 (semear, cultivar, colher), teremos oito condutas comuns, porque elas se equivalem às condutas de “preparar e produzir” previstas no art. 33.

Quando alguém é flagrado pela polícia com uma pequena quantidade de droga, o que ocorre? Como a Lei não fixou o que é “pequena quantidade”, tudo depende da subjetividade de policiais, promotores e juízes. Qual o resultado disso? Muito simples: pessoas pobres, negras, moradoras da periferia, quando flagradas com pequenas quantidades de drogas, são, via de regra, enquadradas como “traficantes”; já pessoas ricas, brancas, moradoras em áreas privilegiadas raramente são flagradas com drogas, porque as consomem em dependências privadas, clubes e condomínios de luxo, mas quando flagradas, imediatamente são reconhecidas como “usuárias”, até mesmo quando portam quantidades expressivas.

Examinando o tema, o ministro Alexandre de Moraes, conhecido por sua postura conservadora quanto à política de drogas, teve acesso à pesquisa “Avaliação do Impacto de Critérios Objetivos na Distinção Entre Posse para Uso e Posse para Tráfico”, que analisou os dados de 656.408 ocorrências por tráfico de drogas em São Paulo, entre 2002 e 2017, com 2,6 milhões de pessoas envolvidas entre suspeitos, testemunhas e terceiros.

Esse estudo, o mais amplo já realizado no Brasil, demonstrou, entre outras coisas, que adolescentes têm 153% mais chances de serem detidos do que adultos flagrados com as mesmas quantidades de drogas (29g em média é a quantidade de maconha apreendida com adolescentes condenados a medidas em meio fechado, contra 56g, a quantidade média de adultos condenados à prisão).

Analfabetos são condenados com média de apreensões de 32g; já os condenados por tráfico com nível superior foram flagrados com quantidade média de 49g, uma diferença de 52%. Sabe-se que 57% da população brasileira é negra (pretos e pardos), mas 68% dos processados por tráfico são negros. Os réus são em 72% das vezes jovens de menos de 30 anos, 86% são homens e 67% não possuem o ensino fundamental completo, como se vê no estudo ‘A questão racial nos processos criminais por tráfico de drogas dos tribunais estaduais de justiça comum: uma análise exploratória’.

A desigualdade das penas aplicadas com base na Lei de Drogas assinala gritante inconstitucionalidade. O cenário seria outro, entretanto, se a lei estabelecesse quantidade objetiva para distinguir usuário de traficante, como já o fizeram muitos países. No caso da maconha, por exemplo, a Espanha fixou 200g, a Austrália 100g, Alemanha e Portugal 25g, Colômbia 20g, Holanda 5g, etc.

No Brasil, mudança do tipo reduziria em muito a máquina de encarceramento, que empilha jovens pobres e negros nas prisões, oferecendo-os como mão de obra às facções criminais e ainda daria às polícias a chance de saírem da ineficiente perseguição ao tráfico no varejo, para uma repressão focada no atacado. Essa mudança produziria economia para o país de alguns bilhões de reais a cada ano, gerando recursos para programas de prevenção ao abuso de drogas com base em evidências.

O STF nunca cogitou legalizar o uso da maconha, uma droga usada por 147 milhões de pessoas no mundo (OMS), como já o fizeram vários estados norte-americanos e muitos países. Pretendia apenas fixar critério objetivo para aplicação uniforme da lei. Contra essa pretensão, se levantou a Idade Média abrigada no Senado, ignorando os resultados horrorosos produzidos pela guerra às drogas, como convém aos que se empenham em conduzir o Brasil ao seu passado.

Se a PEC 45 for aprovada pela Câmara, o Congresso terá desafiado o STF – que é o que a extrema direita deseja, já que o tema da desigualdade na aplicação da lei se mantém, mantida então a inconstitucionalidade referida. Terá, também, oferecido contribuição histórica ao tráfico de drogas, filho dileto do proibicionismo, e aos agentes públicos corruptos que vivem do achaque e do “acerto”. PEC

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