Arte: Edgar Vasques
Arte: Edgar Vasques
Por exemplo: três estocadas do dedo indicador no ar no fim de uma frase, significando reticências, ou uma rápida meia-lua com o dedo, talvez acompanhada de um ruído qualquer, como “suish”, para mostrar onde entrou uma vírgula. Estocada e “suish”, ponto e vírgula. Um golpe horizontal com a mão espalmada significaria travessão, o mesmo golpe mais curto significaria hífen e um decidido golpe de cima para baixo, na diagonal, acabaria com qualquer dúvida sobre se aquele “a” falado é com crase ou não. Além de gestos, as pessoas podem usar o tom de voz ou a postura do corpo para transmitir como seria a palavra se, em vez de dita, ela fosse escrita: um tom soturno denotaria uma palavra em negrito, uma inclinação do corpo indicaria que a palavra é em grifo, ou itálico.
Etcetera, etcetera.
Dizem que o homem é o único animal que fala pela mesma razão que é o único animal que se engasga. Algo a ver com a localização da laringe. Ou é da faringe? Enfim, algo no homem lhe dá o dom da expressão verbal que nenhum bicho tem, mas os bichos, em compensação, nunca se veem na situação embaraçosa de dizer o que não deviam ou se engasgar na mesa. O fato também sugere uma questão: foi a necessidade que o homem – ou, mais provavelmente, a mulher – sentiu de falar que determinou a eventual localização privilegiada da laringe, ou foi o acaso da laringe humana evoluir como evoluiu que determinou a fala? Sabe-se que a vida surgiu na Terra porque a combinação de condições – a nossa distância do Sol e a relação dos elementos na nossa sopa primeva – eram as ideais para haver vida. Isto foi um acaso que só aconteceu aqui e todo o resto do Universo é apenas um bonito cenário de fundo para a nossa excepcionalidade, ou o acaso se repetiu em várias galáxias? O ser humano desenvolveu a fala por um acidente anatômico e assim virou gente ou a linguagem foi uma etapa lógica da sua evolução, porque para ser gente só faltava falar?
O próprio Darwin chegou a especular que a fala começou como pantomima, com os órgãos vocais inconscientemente tentando imitar os gestos das mãos. O que, de certa maneira, redime as aspas com os dedos, pois as aspas seriam anteriores à fala e não uma irritante novidade. A linguagem oral teria se desenvolvido porque, antes da invenção do fogo, a linguagem gestual não era vista no escuro e as pessoas, ou as pré-pessoas, não podiam se comunicar. A linguagem é filha da noite! Teorias estranhas sobre a origem da linguagem não faltavam. No século 17, um filólogo sueco afirmou, com certeza, que no Jardim do Éden Deus falava sueco, Adão falava dinamarquês e a serpente falava francês. Sempre a má vontade com os franceses. Na sua infância – a palavra “infância”, por sinal, vem do latim “incapacidade de falar” – a humanidade não produzia palavras, mas, certamente, produzia sons, e uma das teorias sobre o nascimento de fonemas é que o ser humano teria começado a imitar os sons dos animais para identificá-los e que esta foi a última vez em que o mundo teve uma linguagem comum. Foi chamada de “teoria bow wow”, e o nome já a desmentia, pois “bow wow” é como latem os cachorros anglo-saxões, enquanto os luso-brasileiros fazem “au-au” e os japoneses, segundo os japoneses, “bau- bau”.
A única linguagem comum a toda a humanidade é a dos ruídos involuntários do nosso corpo e o mundo, ou pelo menos a diplomacia, estaria em melhor estado se tivéssemos desenvolvido a capacidade de nos expressar com eles. Toda a espécie humana espirra e tosse da mesma maneira, não há como variar a pronúncia de um arroto e nada simboliza melhor a nossa igualdade intrínseca do que o pum, que todos dão da mesma maneira, não importa o que digam do pum alemão. Reuniões internacionais em que a comunicação se desse por meio dos nossos ruídos elementares, certamente, acabariam em entendimento e paz. E sem a necessidade de intérpretes.
Porque a verdade é que quando hoje se fala na linguagem humana como o que nos fez superiores aos animais e nos trouxe a civilização, esse “superior” e essa “civilização” são entre aspas.
*As crônicas desta coluna são republicações do acervo do autor cedidas ao Extra Classe.
Luis Fernando Verissimo colabora mensalmente com o Extra Classe desde 1996.