A dívida do Rio Grande do Sul com a União já foi paga
Foto: Ricardo Stuckert/PR
As enchentes e alagamentos extremos que assolam mais de 400 municípios no estado do Rio Grande do Sul têm gerado imensa comoção decorrente de tanta destruição, mortes, perda de patrimônios pessoais e públicos, caos, contaminação, enfim, uma gravíssima situação de calamidade pública.
Uma série de ações emergem diante dessa calamidade.
Em primeiro lugar, é preciso ressaltar a imensa solidariedade que movimenta todo o país e o emocionante trabalho do voluntariado local que se manifesta de inúmeras formas.
Em segundo lugar, ganha importância a discussão e necessidade de revisão do modelo econômico neoliberal aplicado no Brasil, que além de privilegiar o rentismo com os juros mais elevados do planeta, tem priorizado atividades primárias predatórias praticadas pelo grande agronegócio de exportação e a mineração, que gozam de inúmeras benesses e vantagens, inclusive tributárias e creditícias, e não respondem pelos danos provocados à Natureza. Mas essa conta vem, e veio pesada para o povo gaúcho.
Neste artigo vou tratar de outra conta pesada: a dívida pública do Rio Grande do Sul, refinanciada pela União desde o final da década de 1990, tendo em vista que nesse contexto de calamidade pública, o governo federal propôs e o Congresso Nacional aprovou a suspensão temporária do pagamento dessa dívida, durante o período de até três anos, conforme a recente Lei Complementar 206, de 16 de maio de 2024.
Esta conta está paga
A dívida do RS com a União nunca foi auditada. Dados obtidos durante a CPI da Dívida Pública realizada na Câmara dos Deputados em 2009/2010 permitiram verificar a onerosidade e até ilegalidades, ilegitimidades e erros contidos no refinanciamento realizado pela União no final da década de 90, no âmbito da Lei 9.496/1997, envolvendo praticamente todos os estados brasileiros, conforme registrado no livro Auditoria Cidadã da Dívida dos Estados.
O Núcleo Gaúcho da Auditoria Cidadã da Dívida também tem publicado relevantes estudos locais que demonstram que a dívida do RS refinanciada pela União já foi quitada, tendo inclusive organizado a campanha Esta conta está paga.
Conforme dados divulgados pelo Tesouro Nacional, a dívida do Estado do RS refinanciada pela União iniciou-se em 1998, com um saldo de R$ 10,181 bilhões, sendo R$ 7,801 bilhões referente à dívida pública então existente no Estado, e R$ 2,380 bilhões que sequer poderia ser considerado propriamente dívida pública, pois corresponde ao valor do empréstimo feito pela União para o alegado “saneamento” do Banrisul no âmbito do programa denominado Proes – leia o capítulo 8 do livro Auditoria Cidadã da Dívida dos Estados.
Não há a devida transparência em relação à origem, condições, composição e demais informações relacionadas às parcelas que compuseram o refinanciamento feito pela União em 1998. O Núcleo Gaúcho da ACD já levantou que antes do citado refinanciamento, a dívida pré-existente no Estado havia crescido de forma exponencial, sem que o Estado recebesse um centavo sequer, influenciada pela exagerada elevação da taxa de juros praticada pelo governo federal sob a justificativa de conter a inflação a partir do Plano Real.
Essa dívida inflada foi submetida ao refinanciamento sob condições ainda mais exageradas, de tal forma que, no período de 1998 a 2023, o Estado do RS pagou à União R$ 28,1 bilhões de juros e amortizações, o equivalente a quase três vezes o valor da dívida original, e, ainda assim, tal dívida apresentava um estoque de R$ 92,9 bilhões, equivalente a quase NOVE vezes o valor refinanciado.
Atualizando-se todos os valores para o ano de 2023, mais uma vez sobressai a onerosidade do referido refinanciamento: a dívida refinanciada pela União (atualizada pelo IPCA desde 1998) equivaleria a R$ 46,7 bilhões; a soma de pagamentos no período foi de R$ 59,3 bilhões, portanto, superior à dívida refinanciada atualizada, mas essa dívida ainda apresenta um estoque de R$ 92,9 bilhões, equivalente ao dobro do valor refinanciado atualizado!
Além de penalizado antes do refinanciamento (em decorrência do impacto da política monetária federal) e durante toda a vigência do referido refinanciamento, o Estado do RS ainda foi submetido ao nocivo “Plano de Recuperação Fiscal”, apesar dos intensos protestos da sociedade civil à época e que em março deste ano, antes da calamidade, o próprio governo do Estado do RS já tinha pedido para ser revisto.
Diante dessa sangria de recursos que já dura por quase três décadas, sem contrapartida alguma ao Estado, é urgente a realização de auditoria integral dessa dívida, pois os recursos subtraídos impactaram na ausência de investimentos essenciais que a calamidade escancara.
A auditoria integral é a ferramenta capaz de elucidar o processo desde a sua origem, verificando todos os aspectos jurídicos, financeiros, econômicos, sociais e morais dessa chamada dívida. É preciso ir muito além da postergação de pagamentos e incidência de juros por até 3 anos de que trata a recente Lei Complementar 206/2024 que, ademais, é imprestável e altamente questionável na parte que condiciona o Estado do RS a desistir de qualquer demanda judicial relacionada a essa dívida repleta de ilegalidades, ilegitimidades e erros, como demonstrado em Nota Técnica elaborada pelo Núcleo Gaúcho da ACD para a Ação Civil Originária nº 2059 do Supremo Tribunal Federal, na qual a OAB-RS solicita a revisão da dívida pública do Rio Grande do Sul com a União.
Maria Lucia Fattorelli é coordenadora Nacional da Auditoria Cidadã da Dívida, membro da Comissão Brasileira Justiça e Paz (CBJP), organismo da CNBB; e coordenadora do Observatório de Finanças e Economia de Francisco e Clara da CBJP. Escreve mensalmente para o Extra Classe.