Cidadelas invisíveis: as malhas do real por trás da realidade aparente
Foto: Domínio público/Reprodução
“Toda vida das sociedades nas quais reinam as modernas condições de produção se apresenta como uma imensa acumulação de espetáculos. Tudo o que era vivido diretamente tornou-se uma representação” (DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997, p. 13).
O que episódios de censura e ataques a livros de autores como Jeferson Tenório e Luís Fernando Verissimo revelam do jogo invisível de forças, arrivismos e tensões presentes no campo político contemporâneo em pleno ano eleitoral?
Devemos em parte a pensadores do século XIX a constatação de que, sob a realidade aparente, escondem-se estruturas invisíveis, responsáveis pela fabricação dessa mesma realidade. Se antes a discussão sobre o que existe por trás, embaixo e além do visível correspondia ao campo da religião (Deus, oculto na História, produz sem cessar a vida incarnada na história), Marx e Freud, por vias diferentes, estabeleceram a primazia, na configuração da realidade social, de forças ocultas que escapam da capacidade consciente de dar sentido aos fenômenos circundantes.
Para Marx, a realidade era produto das lutas entre diferentes classes pelo controle dos meios de produção. Assim, por trás do dia a dia do trabalhador que, sem posses, vende seu tempo de vida para a produção de bens alheios, tece-se uma rede invisível que o fixa na realidade enquanto sujeito de determinada classe alienada do fruto do seu trabalho e, à medida que tem suas potencialidades exploradas pelas relações de produção, os ocupantes dos lugares de poder, riqueza e prestígio vendem-lhe sonhos de consumo e mitos de sucesso sem os quais o trabalhador se veria como aquilo que é: a mosca na teia da aranha.
Ou seja, sob a ótica marxista e de seus herdeiros, a fim de se perceber a posição do proletário nesse jogo de forças e de se entender a realidade como um todo, cabe a análise não só dos mecanismos de produção e distribuição de riqueza, como também dos processos sub-reptícios de manutenção de privilégios e das estratégias de colonização do imaginário. Em suma, a realidade é um campo sempre em disputa por diferentes atores e agendas.
Freud, por sua vez, percebeu que o eu não é senhor em sua morada e que, por trás de escolhas aparentemente conscientes, atuam forças atávicas, traumas infantis e sexuais, a dificuldade de se nomear e levar à consciência desejos e fantasias reprimidos, pulsões de vida e de morte, que fazem do sujeito um títere de forças que escapam seu controle e seu conhecimento conscientes.
Para o pai da psicanálise e seus sucessores, a realidade é o sono do real, o qual só pode ser intuído por meio daquilo que escapa à vigília constante do ego: nossos sonhos, traumas e atos falhos.
Portanto, à impossibilidade de apreensão total do real, atuam filtros conscientes e inconscientes que trabalham a percepção dos fenômenos a fim de produzir a realidade (e realidade é tanto um produto das nossas consciências quanto uma redução do Real à medida que o conseguimos tolerar), sujeitando e modelando esses fenômenos à luz de nossas faculdades, sentidos, crenças e ideologias.
É nesse sentido que se torna importante retomar a ideia de que existe uma rede invisível a produzir a realidade aparente e, uma vez que ideologias são filtros a partir dos quais se produz uma imagem do Real, é nesse embate que devemos inscrever a disputa de narrativas levada à cabo pela extrema direita.
Percebendo que a realidade não é aquilo que existe, mas aquilo que vemos e entendemos (bem como aquilo em que desejamos acreditar para manter a coerência das histórias que narramos a nós mesmos), diferentes atores tentam assumir o controle dos bens de produção dessa realidade.
Embora a imprensa tradicional seja um negócio em decadência, ainda interessa a bilionários diversos a compra e o controle da produção de notícias – sintomas disso são magnatas como o francês Bernard Arnault, do conglomerado de luxo LVMH, que já vai atrás de seu terceiro veículo, a Paris-Match; fundos do Oriente Médio buscando adquirir jornais como o Telegraph; e as provocações de Elon Musk, dono da X-Antigo-Twitter, sobre a conduta de magistrados brasileiros.
Em 1968, Guy Debord constatava que, na Sociedade do Espetáculo, a relação entre as pessoas seria cada vez mais mediada por imagens. Num mundo anterior às redes sociais, o pensador francês já denunciava que a imagem tomaria o lugar do Real e que o aparentar ter seria mais importante do que o ser. Nesse contexto, atores extremistas sabem criar performances pavoneantes, representações capazes de mobilizar e engajar afetos, de criar realidades e identidades partilhadas.
Quando a diretora de um colégio de Santa Cruz decidiu atacar o premiado romance Avesso da Pele, de Jeferson Tenório, ela não o fazia movida pela moral e pelo escândalo das passagens sexuais lidas por ela em frenesi (para compensar restrições morais ou até mesmo para chafurdar nelas, quanto gozo oral não vemos sair das bocas dessas pessoas autoproclamadas “conservadoras” que condenam ao mesmo tempo em que enunciam com prazer aquilo que consideram afrontoso?), mas inscrever a si mesma como possível candidata à vereadora ou prefeita do município.
Essa deve ter sido a mesma estratégia da prefeita de Canoinhas (SC) ao jogar livros, como As melhores do analista de Bagé, de Luís Fernando Verissimo. Elas e tantos outros, nesta sociedade de vaidades e espetáculo, criam falsos escândalos para aparecerem nas redes, gerarem e virarem notícias, encobrirem a própria mediocridade com uma pátina falsa de defensores dos valores tradicionais. É a velha política do pão e circo adaptada à contemporaneidade.
Dessa forma, compreender o jogo invisível de forças a produzirem formas de representação é vital para os diferentes atores que desejam se inscrever no embate pela proposição de utopias e de realidades mais inclusivas, igualitárias e democráticas, estimulando formas de vida em que prevaleçam a tolerância e o respeito ao outro e ao bem comum.
Se a palavra nomeia o que não existe e o faz existir, controlar os meios de produção da palavra cria realidades sob as quais se escondem diferentes disputas. Portanto, aos leitores fica a provocação: o que se esconde por trás da aquisição de tantos serviços de comunicação por parte de negociantes? Qual é o interesse deles na fabricação da realidade? Qual são as sinalizações do Real a escorrerem por nossos dedos?
Arthur Beltrão Telló é professor da PUCRS, do Colégio Gabarito e escritor.