Governantes no divã: os atos falhos de quem não se importa com a população
Foto: Lauro Alves/ Palácio Piratini/ Divulgação
Demandas, necessidades, desejos. De acordo com a psicanálise de orientação lacaniana, na rede de relações que compõem o convívio entre nós e os outros, somos atravessados pelas instâncias das demandas, necessidades e desejos, cabendo a cada um o difícil arranjo entre os imperativos das duas primeiras com o dever ético de descobrir, expressar e viver o próprio desejo.
Como isso obriga o sujeito não só a olhar para si e para o campo das suas relações, mas também a se responsabilizar por suas faltas e escolhas, assumindo a responsabilidade pelo próprio sofrimento ou pelo papel que desempenha e que o leva a sofrer no contexto em que está inserido, o desejo muitas vezes não é compreendido ou admitido pela consciência, sendo recalcado no inconsciente para, mais tarde, manifestar-se como sintoma, como aquilo que fala por nós quando não conseguimos falar.
Nesse sentido, a prática clínica aponta a todo momento para a diferença entre aquilo que declaramos que desejamos e aquilo que (embora não nos autorizemos a desejar) desejamos de fato.
E, por isso, a forma privilegiada para se vislumbrar o que se encontra no inconsciente e os conteúdos nele recalcados são a análise dos sonhos, as associações livres e os atos falhos, quando, sem a censura da razão, aflora ao discurso do sujeito aquilo que foi reprimido.
Em meio à tragédia que acometeu (e tem acometido) o RS com as enchentes de maio e após o governador do estado, vestido de colete salva-vidas, ter dito que não era a hora de procurarmos culpados, fiquei fantasiando o que as autoridades, esses culpados-que-não-devem-ser-procurados, diriam se deitassem no divã.
Como as autoridades do Piratini e do Paço Municipal reagiriam ao se deparar de verdade com o real, esse desastre traumático para o qual não há discurso? E, a partir disso, como responderiam à responsabilidade que sua negligência, falta de cuidado ou cálculos políticos de vender o estado a quem pode pagar mais acarretaram?
Durante a vida, a cada momento somos cobrados pelas responsabilidades das nossas escolhas, ainda que nem sempre respondamos a elas à altura. Se como meio para realizar seu desejo de chegar ao poder municipal, um deles precisou jogar com as demandas e necessidades da extrema direita, tornando-se o candidato do campo; se o outro, apesar de negociações semelhantes, ainda encontrou espaço para assumir sua orientação sexual (e assim também negociar o voto dos progressistas como a versão melhorada do pesadelo neoliberal), o que ambos diriam quando confrontados com os efeitos do seu desejo?
Atos, culpa e dívida
Uma forma de enunciar o que se deseja sem se responsabilizar por isso é a negação, que nomeia aquilo que quer negar.
Quando o governador disse que não se deveria procurar culpados, o inconsciente o traiu, revelando a própria responsabilidade de suas escolhas na falta de prevenção para a tragédia e na destruição do código ambiental.
Longe do divã, mas em frente às câmeras de tevê, nossos governantes se despem, retiram a máscara de administradores empáticos que zelam pela população para deixar a nu aquilo que pensam.
É nesse jogo de desmascaramento que se inscrevem outros ditos por parte desses dirigentes, como quando perguntados por que não houve prevenção e responderam que o governo tinha outras agendas, ou, no caso municipal, quando se pôs a culpa pelo lixo e das doenças que proliferam nas zonas alagadas da cidade nos cidadãos que não cuidam do próprio espaço, lavando as mãos para a responsabilidade do poder municipal em deixar a cidade limpa.
Ou seja, entre atos falhos e atos nem tão falhos assim, o discurso desses dirigentes revela o total descaso e indiferença com o bem-estar da população.
A palavra culpa em alemão é Schuld e também significa dívida. Ao negociar o desejo pelo cargo com as agendas nefastas de empresários que depredam o meio ambiente e as leis que deveriam preservá-lo, nossos culpados adquiriram duas dívidas: primeiro com os donos do poder, os negociantes que eles representam. A segunda com a dor da população, uma vez que suas escolhas são responsáveis pelo trauma e ampliam o sofrimento do povo que os elegeu.
A psicanálise também fala do desejar enquanto verbo intransitivo. Não importa o que se deseja, mas que se deseje. Pode ser um trabalho, um amor, ou um chiclé de menta.
Espero que nossos governantes desejem se responsabilizar pelas escolhas que agravaram a tragédia que vivemos, encontrando um ponto de vista mais humano para a gestão dos bens públicos.atos
Desejo também que a população repense os governantes que temos eleito, que os próximos trabalhem para maximizar a qualidade de vida de todos e que suas atitudes não lembrem a de corretores imobiliários vendendo territórios e bens para ganhar comissão.
Arthur Beltrão Telló é professor da PUCRS, do Colégio Gabarito e escritor.