Foto: Igor Sperotto
Foto: Igor Sperotto
A minha geração abortou sob a ditadura e ainda num Brasil rural. Muito parecida com a da minha mãe e das minhas avós.
Aos 19 anos encarei uma sala suja e clandestina. E sangrei até o fim, com muito medo, mas aliviada, de mão dada com uma amiga. Só havia a previsão no Código Penal, artigo 128, que não se pune nos casos de violência e risco de vida da mãe, mas inacessível para as mulheres mais pobres.
Cinquenta anos depois. Achamos que vivemos numa democracia. O país firmou todos os compromissos internacionais de direitos humanos das mulheres, que reconhece a desigualdade de gênero.
Na ONU, participei de todos os processos em que o Brasil recebeu as recomendações para cessar com os abortamentos inseguros e a morte das mulheres, pela sua crueldade. Nos anos de 1990 e 2000 reafirmamos este direito a viver com a elaboração de protocolos de saúde e a garantia por lei pelo SUS.
No entanto a dignidade das meninas e das mulheres continua sendo colocada à prova através do discurso pseudo-religioso, em que a culpa sempre recai sobre elas. Está postada numa bandeja onde, ao invés de vinho, se serve sangue.
Pelo PL 1904/24, que segue urgente na Câmara dos Deputados, todas nós seremos homicidas
E os estupradores poderão gozar da pena reduzida à da metade das vítimas de estupro ou de acidentes de percurso, que decidirem abortar. Incluindo as dos estupros corretivos.
Pergunto, com o olhar de 19 e de 69 anos, que país é esse que aceita e mantém a lógica do estuprador como mais legitima do que suas vítimas?
O processo que se instalou na Câmara dos Deputados sugere que a vida das mulheres vale muito pouco. Seus corpos não lhes pertencem, a autonomia para tomada de decisões nada vale, além de ser uma moeda de troca por cargos, poder no orçamento e jogos de poder.
Não há nenhuma atitude mais respeitável neste momento do que retirar este PL da urgência. Meninas não são mães. Estupradores não são pais, são violadores.
A justiça de gênero deve ser restabelecida no Brasil, se quiser ser uma democracia. Pois enquanto o estupro continuar sendo visto como um acontecimento na vida das mulheres e meninas, estaremos no pior dos mundos.
Telia Negrão é jornalista e cientista política