Imagem: Fragmento de Guerreiros de Terracota da Dinastia Qin/ Mausoléu de Qin Shihuang/ Domínio Público
Serão necessárias muitas décadas, talvez séculos, para que se possa mapear e conhecer todas as consequências da entrada da China no “sistema interestatal capitalista” no final do século 20. Assim como tomará tempo para avaliar o impacto deste mesmo sistema interestatal, criado pelos europeus, sobre a história milenar da China.
O que é certo, e de imediato, é que a incorporação chinesa ao sistema revogou, automaticamente, o “universalismo ocidental”, junto com seus critérios de avaliação dos fenômenos internacionais.
Mesmo assim, é possível perceber a olho nu a desproporção que existe entre o Estado chinês e a maioria dos demais Estados nacionais do mundo, a começar pelos próprios Estados europeus, que se transformaram, na sua maioria, em pequenos refúgios de descanso e férias, extremamente aprazíveis, mas sem nenhuma importância, e nenhum tipo de soberania nacional.
Depois da sua Revolução Republicana, de 1911, mas sobretudo depois de sua adesão às instituições multilaterais, na última década do século passado, a China passou a ser reconhecida como um “Estado nacional”, sem nunca ter deixado de ser uma civilização milenar que manteve sua homogeneidade durante pelo menos 2,5 mil anos.
Um “Estado-civilização” que é hoje a segunda maior economia do mundo, que controla um quinto da população mundial, relativamente coesa do ponto cultural e sem nenhum tipo de segmentação religiosa relevante.
Números que permitem uma primeira avaliação sobre o desequilíbrio automático provocado pela incorporação da China ao sistema de Estados nacionais, bastando comparar os números chineses com os das potências tradicionais desse sistema: a China possui 20% da população mundial, enquanto a população dos EUA representa cerca de 4,5%; a do Japão, 1,3%; a da Alemanha, 0,8 %; a da França, 0,6%, o mesmo que a Grã-Bretanha.
A Europa como um todo tem 6,4%, e o Império Britânico chegou a ter, no seu apogeu, cerca de 2,5% da população mundial.
E não é necessário destacar a mais absoluta desproporção que sempre existiu entre a China e seus vizinhos do Leste e Sudeste asiático, incluindo Coreia, Vietnã, Camboja, Brunei, Mianmar ou mesmo Japão.
O caminho que levou a China a ter essas dimensões não foi simples nem linear, e se deu na forma de grandes ciclos de centralização de poder e expansão territorial, seguidos, periodicamente, de movimentos de descentralização marcados por grandes guerras ou revoluções intestinas.
A começar pelo próprio processo de criação do Império Chinês, no período das guerras entre os “Reinos Combatentes”, de 481 a.C até 221 d.C. (segundo a cronologia ocidental), vencidas por dois reinos situados no nordeste da China: o Estado Qin, que foi o grande vencedor da guerra e promoveu a unificação, e o Estado Han, que o sucedeu e criou, no ano de 206 a. C, o primeiro grande Império Chinês, que durou 400 anos e foi contemporâneo do Império Romano.
China das dinastias
Durante esse período, o Império Han estendeu sua influência sobre a Coreia, a Mongólia, o Vietnã e a Ásia Central, chegou até o Mar Cáspio e inaugurou a primeira grande “rota da seda”.
Muitos séculos depois, após um longo período de fragmentação territorial e guerras intestinas, a China viveu um novo processo de centralização do poder, sob a Dinastia Ming (1368-1644), que reorganizou o Estado chinês e liderou uma segunda grande onda de conquistas territoriais e navais.
Em 1424, o império suspendeu suas expedições marítimas, lideradas pelo Almirante Cheng Ho, optando pelas conquistas terrestres que permitiram à China aumentar seu território e multiplicar sua população, sem se afastar de suas linhas de suprimento estratégico.
Basta dizer que a China conquistou, nos três séculos da Dinastia Han, mais do que o dobro do que foi conquistado pela Europa e seus impérios marítimos em igual período.
E o mesmo voltou a acontecer com a Dinastia Qing, que governou a China entre 1668 e 1912, em particular durante o reinado do Imperador Chien-Lung (1735-1799), quando a China duplicou seu território, conquistando o Tibet, Taiwan e todo o oeste do atual território chinês, chegando até o Turquestão.
Criou, então, um sistema de “círculos concêntricos”, construídos a partir do seu pináculo civilizatório, situado na China, o chamado “Império do Meio”.
Durante esses 2 mil anos de história imperial, a China estabeleceu um tipo particular de relacionamento com seus povos vizinhos que aceitaram manter sua autonomia em troca do reconhecimento da superioridade da civilização chinesa.
Um “modelo de relacionamento” que se transformou numa “rotina milenar”, no mundo sinocêntrico até meados do século 19, uma espécie de “sistema hierárquico tributário”1 baseado na sua assimetria extraordinária de recursos e de poder, e no reconhecimento, por parte de seus vizinhos, da superioridade da civilização chinesa, envolvendo um tributo entregue junto com uma visita e homenagem anual ao seu imperador.
Um sistema tributário, mas com forte conotação cultural e moral, que não utilizava normalmente a força nem exercia uma dominação violenta com relação aos elos inferiores dessa hierarquia.
Baseava sua força na diplomacia e nesse reconhecimento moral e cultural, em troca da proteção oferecida pela China contra os “povos bárbaros” (incluindo os europeus) que vivam fora desses “círculos concêntricos”.
Este sistema funcionou de forma relativamente pacífica e eficaz durante praticamente 2 mil anos, talvez porque não fosse uniforme nem monolítico, adequando-se a cada caso, em cada época, apesar de que mantivesse sempre em comum a aceitação da superioridade da civilização chinesa que todos imitavam, de uma forma ou outra.
Ocidentalização
Esse tipo de relacionamento regional milenar foi interrompido pela chegada das potências coloniais europeias, sobretudo na segunda metade do século 19, depois das duas “Guerra do Ópio”, em 1839-42 e 1856-60, quando a China foi derrotada e submetida pelas potências ocidentais, mesmo sem ter se tornado, jamais, uma colônia dos europeus.
Em 1911, a Revolução Republicana encerrou esses 2 mil anos de história imperial, e quase um século de humilhação “quase colonial”.
Mas logo em seguida a China foi invadida e massacrada pelo Japão na década de 30 e até o final da Segunda Guerra Mundial.
Depois da vitória da Revolução Comunista, em 1949, a China foi excluída e se manteve isolada do sistema internacional comandado pelos europeus e seus descendentes, até o dia 8 de dezembro de 1971.
Aí se iniciaram as negociações diplomáticas entre a China e os Estados Unidos, que recolocaram a China no Conselho de Segurança das Nações Unidas, fizeram os Estados Unidos reconhecerem a ilha de Taiwan como parte do território continental da China e culminaram com a integração chinesa às instituições do sistema político e diplomático interestatal, e do sistema econômico internacional de mercado e capitalista.
A história do “milagre econômico” chinês, a partir dos anos 1980 e 1990, é bem conhecida, e está amplamente documentada. O que é menos discutido é a forma como o sistema interestatal impactou e modificou essa longa tradição internacional chinesa.
Foi apenas na década de 1990 que a China estabeleceu suas primeiras relações diplomáticas, segundo o padrão europeu, com Coreia do Sul, Singapura, Indonésia, Vietnã e Brunei.
E em 1994, a China iniciou o processo de criação, junto com a Rússia, do que viria a ser a Organização de Cooperação de Shangai, junto com Cazaquistão, Quirguistão e Tadjiquistão, seguindo um roteiro que lembra muito, até hoje, seu velho modelo milenar de relacionamento regional.
Essa situação de aparente calmaria e sucesso econômico foi revertida quase ao mesmo tempo, na própria década de 1990, quando a China começou a conviver e enfrentar-se com as “regras” da competição e da guerra próprias do sistema interestatal, e contraface necessária do sistema econômica capitalista.
Nesse momento, a China reagiu à proposta de independência de Taiwan apoiada tacitamente pelos Estados Unidos, que mobilizaram sua Sétima Frota, ocupando o Estreito de Taiwan para conter a reação contrária da China.
Tudo indica, por exemplo, que foi nesse momento que a China começou a formular seu projeto de criação de um poder naval que fosse autônomo, e que fosse capaz de derrotar as forças americanas no Mar do Sul da China e em Taiwan.
Trinta anos depois, a China hoje possui a maior frota naval do mundo, contando com três porta-aviões e 429 embarcações, quase o dobro dos Estados Unidos, que apesar disso seguem sendo a marinha mais poderosa do mundo.
Graças ao seu poder militar superior, os EUA seguem controlando atualmente quase todos os pontos estratégicos situados entre o mar do Japão, o Oceano Índico e o Pacífico Sul, e ainda possuem a capacidade de bloquear, em caso de guerra, os fluxos comerciais e energéticos indispensáveis à sobrevivência diária da China.
A China, por outro lado, dispõe hoje da capacidade de enfrentar e vencer os EUA em quase todos os cenários de guerra, incluindo o da ocupação militar de Taiwan, mesmo no caso do envolvimento de tropas americanas, a menos que os EUA decidam utilizar armamento atômico, o que levaria a China a responder utilizando suas próprias armas atômicas táticas.
Na terceira década do século 21, a China não demonstra nenhuma disposição de exercer a função militar global dos Estados Unidos, e concentra sua reivindicação geopolítica em Taiwan e no desbloqueio de seus acessos marítimos ao Oceano Pacífico e ao Mar da Índia.
Muitos comemoram o fato de que a entrada da China no sistema interestatal capitalista lhe facilitou seu extraordinário sucesso econômico.
Mas poucos reconhecem que a contraface necessária desse sucesso tem sido sua submissão progressiva às regras da competição e da guerra que são próprias do sistema estatal que os europeus impuseram ao “resto do mundo” depois do fim de sua dominação colonial na África e na Ásia, como já haviam feito na própria América.
Essa nova situação coloca a China frente a uma disjuntiva que esconde o segredo do seu futuro: entre o seu velho modelo de relacionamento regional, que aponta na direção de um “futuro hierárquico, mas compartido”; e o futuro que vai sendo obrigado a trilhar de forma cada vez mais inapelável, como parte essencial e indissociável do sistema interestatal capitalista.
1 Jacques, M.(2009) When China Rules the World, The Penguin Press, New York, p:274
José Luís Fiori é professor emérito de economia política internacional da UFRJ; coordenador do GP da UFRJ/CNPq “O poder global e a geopolítica do Capitalismo”; e do Laboratório de “Ética e Poder Global”; Publicou recentemente Sobre a Guerra, 2018, A Síndrome de Babel, 2020; e, Sobre a Paz, 2021, todos pela Editora Vozes, Petrópolis. Artigo publicado originalmente no Observatório Internacional do Século XXI, 6, julho de 2024.