OPINIÃO

China e EUA: relações de mudança

Por Andrés Ferrari Haines / Publicado em 22 de julho de 2024

China e EUA relações de mudança

Foto: Casa Branca/Divulgação

Foto: Casa Branca/Divulgação

Joe Biden declarou “estou governando o mundo”, em entrevista na tentativa de  melhorar  sua  imagem  após seu péssimo desempenho no debate presidencial com Donald Trump. A China, sempre rápida a responder às provocações  ocidentais, praticamente  ignorou  a manifestação, como, em grande parte, está fazendo com as próprias eleições. (Nota de Editor: Biden desistiu de sua candidatura no último domingo, 21)

A China não demonstra tensão como fez nas eleições que levaram Biden à Casa Branca para substituir Trump – que tinha levado o confronto aos seus níveis mais altos desde que ambos retomaram as relações em 1972. Em 2020, a China  – assim como os membros da UE, o G-7 e a OTAN  – esperavam que uma vitória de Biden permitisse uma relação mais próxima e menos conflituosa com os Estados Unidos.

Como presidente, Trump – após declarar guerra comercial – realizou regularmente provocações e ataques contra a China. Além disso, pisoteou e ignorou as instituições liberais internacionais (OMC, ONU, OMS, etc.) que foram promulgadas pelos próprios EUA. A China, assim como os europeus deslocados, esperava que, com Biden, os Estados Unidos regressassem à sua “normalidade”, permitindo diálogos e compromissos mais construtivos.

A política de Trump em relação à China estressou os asiáticos. Antes da eclosão da pandemia de covid-19, (que o próprio Trump se apressou a atribuir ao suposto “vírus chinês”), a sua estratégia de isolar a China gerava bastante preocupação nos asiáticos. Trump concentrou-se em fortalecer os laços com os rivais chineses no Pacífico, que constituíam o Diálogo Quadrilateral de Segurança (Índia, Austrália e Japão) e que incluía exercícios militares perto do território chinês. Além disso, inflamou a rivalidade sino-indiana, que produziu até mesmo um breve confronto armado na fronteira que se disputam os dois gigantes asiáticos.

Com base numa interferência sem precedentes na eleição de Mauricio Claver-Carone como presidente do Banco  Interamericano de Desenvolvimento – já que sempre se nomeava a alguém que não fosse estadunidense– Trump procurou restaurar a preeminência “natural” dos EUA na América Latina com mais investimento e comércio num espaço em que fora deslocado pela China. Trump tentou usar incentivos financeiros para encorajar as empresas americanas a deslocarem-se da Ásia “de volta para as Américas”, combinados com até 50 bilhões de dólares em investimentos em infraestrutura, energia e transportes.

Finalmente, esnobando os europeus, Trump abordou chefes de estado “autocráticos” como o próprio Putin. Ao anunciar também o fim das “guerras sem fim” dos EUA, propôs a retirada militar do Afeganistão e de outros países do Médio Oriente, ao mesmo tempo que expressou relutância em iniciar guerras com o Iran ou invadir a Venezuela. Chegou mesmo a propor a saída do G-7. Isto, através da criação de um novo G-7, composto por grandes democracias e em que participariam países como a Índia ou o Brasil. Desta forma, Trump se infiltrava dentro do chamado “Sul global”.

Para a China, a expectativa de melhores relações com EUA durou pouco. Biden – agora acompanhado  pelos  europeus  – assediou tanto a China como Trump, e isso  ficou claro  na  reunião que imediatamente tiveram no Alasca e na criação do Aukus com o Reino Unido e a Austrália, cujo objetivo era que Canberra tivesse submarinos com propulsão nuclear. As provocações sobre Taiwan aumentaram, assim como a guerra comercial  que  tinha  sido  o legado de Trump. O último caso foi em maio de 2024, quando Biden anunciou o aumento de 27,5% para 102,5% nas tarifas sobre as importações chinesas, visando  especialmente  a  indústria  de veículos elétricos e outras tecnologias (baterias, células solares, aço e alumínio). A justificativa repousava porque a China teria tido “práticas comerciais desleais em matéria de transferência de tecnologia, propriedade intelectual e inovação.”

A China afirmou que estas acusações eram infundadas, o que demonstra – de certa  forma  – que a  sua  diplomacia  regressou ao seu estilo tradicional, após um período em que  se  destacaram  os seus diplomatas “lobos guerreiros”. Estes se caracterizavam pelas suas respostas mais duras e contínuas ao Ocidente, no lugar da maneira habitual mais cautelosa e gentil. O modo mais proativo de “guerreiro lobo” revelou uma China assertiva que levantou preocupações sobre as suas intenções – especialmente nos seus vizinhos imediatos, e em particular na Índia. Ao que parece, a China viu-se deixando passar as hostilidades que recebeu ou a confirmar os receios sobre as suas intenções.

A diplomacia do “lobo guerreiro” ganhou destaque em 2020, quando Zhao Lijian se tornou porta-voz do Ministério das Relações Exteriores da China, devido às suas constantes ações combativas nas redes sociais, geralmente dirigidas aos EUA. Em janeiro de 2023, Zhao foi substituído no cargo. Xi Jinping explicou que pretendia “adotar um tom narrativo que reflita abertura e confiança, mas que transmita modéstia  e  humildade,  numa  tentativa  de moldar uma imagem confiável, admirável e respeitável da China”.

Por trás desta mudança está a guerra na Ucrânia, que tornou viável a aliança entre a China e a Rússia e possibilitou  a materialização da sua habitual retórica de uma nova ordem global. Vale lembrar que a China tem defendido um mundo multilateral e pacífico desde a consolidação da sua ascensão meteórica.  A união com a Rússia avançou nesse sentido, dado que os líderes russos revelaram enorme aptidão em conquistar o apoio dos países do “Sul Global”, além de terem utilizado as suas exportações com grande inteligência no comércio global.

Da mesma forma, tornou-se evidente que a Rússia preservou décadas de diplomacia soviética positiva na Ásia e na África, o que cimentou o seu discurso contra o “Ocidente Coletivo”, para explicar a sua participação na Ucrânia vis-à-vis  a  forma  crua  e  injuriante com que os nativos e descendentes daquelas  regiões  –  e  que estavam na Europa – foram tratados por ocidentais. Dado que os Estados Unidos pressionava a “escolher um lado” – somando-se ao isolamento comercial e econômico russo promovido pelas sanções – os países do “Sul Global” optaram esmagadoramente por preservar os seus laços  com  a  Rússia.  À  medida  que  estes  laços  cresceram, Xi e Putin solidificaram a aliança entre a Rússia e a China.

Já em março de 2022, o ministro dos negócios estrangeiros chinês, Wang Yi, disse que os  laços  chineses  com  Moscou constituem “uma das relações bilaterais mais cruciais do mundo” e chamou a Rússia de “parceiro estratégico mais importante” do seu país, enquanto Pequim continua a recusar-se a condenar a invasão da Ucrânia, apesar da crescente pressão ocidental para usar a sua influência contra a  Rússia.  Em  resposta,  a  China  afirmou  que nunca aceitará que os Estados Unidos “exerçam coerção contra as relações entre a China e a Rússia”. Wang afirma que essa aliança é “um novo paradigma para as relações de grandes potências que é completamente diferente da antiga era da Guerra Fria”, baseada no “não alinhamento, não confronto e não perseguição de terceiros”. Além disso, esta aliança transformou dois agrupamentos  já existentes, como os BRICS e  a  Organização  de  Cooperação  de Xangai (OCX), dos quais a China e a Rússia faziam parte, em bases para o Sul Global construir o que chamam de uma ordem mundial alternativa e mais justa.

Enquanto os Estados Unidos, com o seu apoio às guerras na Ucrânia e em Gaza, se isolam do mundo não-ocidental, a China fortalece as relações econômicas, de segurança e militares em mais países e regiões. Além de ter aproximado rivais como o Iran e a Arábia Saudita e conseguido uma reunião trilateral com os rivais Índia e Paquistão, reforçou as suas relações com a Liga dos países Árabes e o Conselho de Cooperação do Golfo. Pesquisas recentes relatam que as opiniões positiva da China (assim como também da Rússia) ultrapassaram as dos Estados Unidos nos países de maioria muçulmana, ao mesmo tempo que – de acordo com o Índice de Percepção Democracia 2024—se tornaram cada vez mais positivas em todas as regiões do mundo, exceto na Europa, onde muitos países, pela primeira vez desde o início da administração Biden, tiveram percepções negativas dos Estados Unidos.

A segurança da China quanto à sua posição frente aos EUA foi revelada pela ausência inesperada de Xi Jinping no encontro do G20. Depois, na recepção fria que o secretário de Estado dos Estados Unidos, Antony Blinken, recebeu durante a sua recente visita, e, apesar das ameaças, na preservação da sua posição de não participar sem a Rússia nas negociações de paz na Guerra de Ucrânia como pretende a Otan. A China tem denunciado que os Estados Unidos pretendem criar uma Otan Ásia-Pacífico, convidando o Japão, a Coreia do Sul e a Nova Zelândia a aderirem ao Aukus. A Otan justifica-se, acusando a China de ser um “desafio sistêmico” à segurança euro-atlântica e de “expandir secretamente o seu arsenal nuclear”, além de ser um “facilitador militar decisivo” da Rússia contra a Ucrânia. Um comunicado emitido na reunião do 75º aniversário do bloco, em Washington, disse que a China continua a “desafiar os nossos interesses, segurança e valores”.

Coincidindo com o encontro da Otan, tropas da China e da Bielorrússia – o mais novo membro da OCX – iniciaram exercícios militares. Ao mesmo tempo, Viktor Orbán, primeiro-ministro da Hungria – país membro da Otan que acaba  de  assumir  a presidência rotativa da União Europeia – visitou a China como parte da sua viagem em “missão de paz”, que incluiu Moscou e Kiev. Além disso, a Turquia, outro membro da Otan, também reconheceu  o papel pacífico da China, quando o seu presidente – Recep Erdogan – solicitou a adesão à OCX.

Enquanto isso, o Presidente ucraniano Zelensky sintetiza a inserção global das duas maiores potências mundiais quando admite que para chegar a um acordo de paz com a Rússia é necessária a voz da China, mas que seu diálogo com a Otan é apenas para pedir mais armas, porque a quantia que recebe “não é suficiente. Nunca é suficiente”.

Andrés Ferrari Haines é professor Associado do Departamento de Economia e Relações Internacionais da Faculdade de Ciências Econômicas da Ufrgs. Pesquisador do Núcleo de Estudos do Brics (Nebrics/Ufrgs). Este artigo publicado originalmente no Observatório Internacional do Século XXI, Nº 6,  em julho de 2024. Link Alternativo.

 

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