OPINIÃO

É preciso salvar o Parlamento brasileiro

Por Marcos Rolim / Publicado em 16 de julho de 2024
É preciso salvar o Parlamento brasileiro

Foto: Paulo Pinto/Agência Brasil

Projeto da Fome do Parlamento: a cidade de São Paulo concentra 25% da população de rua do país, com 52 mil pessoas que são mantidas vivas por conta da ação de ONGs e da pastoral

Foto: Paulo Pinto/Agência Brasil

Cena um: A Câmara Municipal de São Paulo aprovou, em primeiro turno, o projeto de Lei 445/2023, de autoria de um vereador bolsonarista chamado Rubinho Nunes (União Brasil). Pelo texto, quem doar alimentos a pessoas em situação de rua poderá ser multado em R$ 17.680 (500 UFESP). Para que não haja a multa, será preciso providenciar tendas, mesas, cadeiras, talheres, guardanapos, além de atender a uma série de exigências burocráticas. Se a doação for de Organização Não Governamental (ONG), se deverá comprovar que a razão social da entidade é reconhecida pelos órgãos competentes; ter o registro atualizado do quadro administrativo, com nomes, cargos e suas identidades; realizar o cadastro dos beneficiados pela doação na Prefeitura com informações atualizadas; identificar os voluntários com crachá e autenticar em cartório toda a documentação. As doações deverão ser agendadas nas Secretarias e os locais designados deverão ser inspecionados previamente.

Na cidade de São Paulo, há 52 mil pessoas vivendo na rua (25% da população em situação de rua do Brasil). Elas são mantidas vivas por conta da ação de ONGs e de uma intensa atividade pastoral, como aquela liderada pelo padre Júlio Lancellotti. O referido projeto, caso se transforme em lei, tornará a solidariedade ainda mais difícil e inibirá iniciativas dos cidadãos que se reúnem de maneira informal para alimentar pessoas fragilizadas. Votaram a favor dessa maldade 41 vereadores. 41 pessoas eleitas pelo povo em favor de um “Projeto da Fome”. Apenas as bancadas do PSOL e do PT se opuseram.

Cena dois: O Senado debate Projeto de Emenda à Constituição (PEC 03/2022), já aprovado pela Câmara dos Deputados, que pretende transferir da União para Estados, Municípios e particulares os chamados “terrenos de Marinha” das costas brasileiras (33 metros desde a maré mais alta), além das áreas de lagos e rios que sofram influência das marés, permitindo a entrega de mão beijada de imenso patrimônio público (48 mil quilômetros em linha reta), ainda sequer totalmente demarcado e que envolve restingas, mangues e dunas, áreas de salvaguarda para as mudanças climáticas e que precisam ser protegidas. Se a especulação imobiliária, os cassinos e o setor hoteleiro de luxo tivessem redigido o projeto, teriam tido mais pudor. O relator da PEC no Senado, senador Flávio Bolsonaro (PL), possui certa trajetória no mercado imobiliário, digamos assim, já tendo demonstrado destreza na compra de mansões e apartamentos com dinheiro vivo.

Cena três: A Câmara dos Deputados aprovou regime de urgência para a votação do PL 1.904/2024 (o chamado “Projeto do Estupro”), de autoria de Sóstenes Cavalcanti (PL/RJ), pastor muito próximo a Silas Malafaia, que equipara o aborto em casos de estupro a homicídio se realizado após 22 semanas de gestação. A proposta acarretará penas de seis a 20 anos de prisão às mulheres vitimadas e possui 56 outros parlamentares como coautores, todos da extrema direita. No Brasil, 61,4% das mulheres estupradas têm menos de 13 anos. Entre os estupradores, 64,4% são familiares e 86,1% são conhecidos. Ao contrário do que chegou a afirmar o deputado Cavalcanti, o PL não diz respeito apenas às mulheres maiores de idade, o que já seria escandaloso, mas terá correspondência no ato infracional, que é definido como crime praticado por adolescentes. Se interromper a gravidez em caso de estupro pode ser crime, então será também ato infracional a ser considerado tão grave como o homicídio, o que significa prender meninas entre 12 e 18 anos, que foram violadas, em instituições do antigo sistema Febem por todo o país.

O Parlamento é a Instituição por excelência da democracia, porque ali estão representadas (ou deveriam estar) as mais significativas posições políticas e ideológicas, diversidade que obriga ao debate e à construção de soluções ponderadas.

As três cenas aqui referidas, as quais se poderiam agregar centenas de outras, dão conta de um processo de aviltamento do Parlamento que não começou agora, mas que parece ter alcançado um patamar de miséria cultural e sordidez jamais visto.

A rigor, não há mais “debate”, porque esse é o instituto da escuta, do respeito e dos argumentos. A grande maioria dos nossos parlamentares não fala para seus pares, mas para suas redes.

Em vez do argumento, a lacração; em vez das evidências, a referência a deus, à família e à pátria; em vez da pesquisa e da humildade diante da complexidade, as certezas da bancada da 5ª série.

O Parlamento tem produzido cada vez menos estudos e soluções, entregas substituídas pela performance de gritos e ameaças e por uma insensibilidade social que tem traços de psicopatia.

É preciso salvar o Parlamento brasileiro do grupo de desqualificados que foi mandado por engano do WhatsApp para lá. É preciso renovar a Instituição profundamente. O Brasil já teve muitos parlamentares respeitáveis, à direita e à esquerda; lideranças que foram referências em debates que demandavam conhecimentos técnicos e com quem sempre se poderia aprender algo, mesmo na divergência.

A cada eleição, esse tipo de parlamentar foi se tornando mais escasso, o que foi transformando o espaço legislativo em um deserto ético. Os partidos, bem o sabemos, não tomarão iniciativa para lançar candidatos mais sérios e preparados, porque a regra eleitoral é outra e ela demanda “influencers”, não inteligência nem decência. Então, só os eleitores podem assegurar a renovação.

A propósito, nas eleições que se avizinham, qual a importância que você dará ao meio ambiente? Será possível que, após vivermos uma das maiores tragédias por fenômeno climático do mundo, ainda se vá votar em negacionistas do clima? Em gente animada com a privatização das praias? Que deseja flexibilizar as leis ambientais para seguir “passando a boiada” e nos aproximando do fim do mundo?

Marcos Rolim é jornalista, doutor em Sociologia. Escreve mensalmente para o jornal Extra Classe.

Comentários