OPINIÃO

Quando o carro vira uma arma social

Por Cristiano Fretta / Publicado em 30 de julho de 2024
Quando o carro vira uma arma social

Imagem: Reprodução

O motoboy Pedro Kaique Ventura Figueiredo, 21 anos, e o porsche que o atropelou: “O Brasil de uma minoria tem infelizmente muito mais força contra um marginalizado país em que, na moto bamba, tenta viver uma maioria”

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A palavra “playboy” inicialmente foi utilizada para se referir a filhos de famílias abastadas que, na era de grande posteridade dos Estados Unidos pós-Segunda Guerra, levavam uma vida repleta de ostentações. Hugh Hefner, fundador da revista Playboy é um grande merecedor dessa nomenclatura. No Brasil, a palavra banhou-se em sentido pejorativo: playboy é aqui, antes de tudo, um homem jovem e rico que, norteado por prazeres puramente materiais, acaba por ser um idiota social. Temos até uma “tradução” para isso: filhinho de papai.

Já “motoboy” se refere a uma profissão de baixo prestígio social, comumente exercida por homens jovens. Entre o “play” e o “moto”, um abismo formado por origens sociais, tom de pele e, claro, acesso a uma cidadania plena e digna.

Motoboys precisam cortar o trânsito e arriscar suas vidas para que as entregas rápidas sejam sinônimo de mérito pessoal e, portanto, de alguma segurança trabalhista. Já os playboys, caso estejam impedidos de acelerar seus carrões pelas congestionadas ruas de nossas metrópoles, podem se deliciar com o ar-condicionado e o sistema de som do carro. Caso se sintam entediados, é só acessar o aplicativo do banco e dar uma breve olhada em seu saldo.

Na segunda-feira, dia 29 de julho, um playboy dono de Porsche utilizou o seu veículo como ferramenta para assassinar um motoboy após uma discussão de trânsito, em São Paulo. A fraqueza da moto contra a potência de um caríssimo carro importado. Dois mundos tão diferentes que só conseguem ter algum contato por meio da força física.

O Brasil de uma minoria tem infelizmente muito mais força contra um marginalizado país em que, na moto bamba, tenta viver uma maioria.

O pé que acelera um carro de luxo contra um trabalhador em uma moto é igual à mão que assina reformas e leis que tiram direitos dos que menos possuem. Ao final de contas, seja a curto ou longo prazo, a vida dos mais vulneráveis estará posta em risco.

Conheci muitos playboys em minha vida, mas infelizmente tive pouco contato com motoboys. Isso se deve, claro, ao meu contexto social de classe média. De vez em quando me pego pensando no que eu faria caso fosse rico. Muitas coisas me vêm à cabeça, mas comprar um carro importado nunca é uma delas.

Penso que os valores que damos aos bens materiais carregam em si não somente uma manutenção de um status social, mas sobretudo um empoderamento que ostentamos frente ao outro.

Se eu tivesse um Porsche, jamais abriria meu vidro e continuaria andando sem muita pressa, que é a forma como gosto de dirigir. Mas, se ao invés disso, eu tivesse uma moto, andaria ressabiado o tempo todo, com medo de que qualquer desvio me jogasse para debaixo de uma roda de caminhão ou que um playboy me atropelasse com seu carrão.

O Brasil infelizmente é um país dominado pela ideologia de que dirigir um Porsche ao invés de uma moto tem a ver mais com mérito pessoal do que com privilégio social. É estupidez supormos que, em alguma instância, o motorista do carro de luxo teria o mesmo tratamento caso menos privilegiada fosse sua posição social.

Em uma sociedade ideal, ele deve sofrer todo o rigor da lei. Ou melhor: em uma sociedade ideal, todos deveriam ter direito de comprar o seu Porsche. Quem sabe, assim, não haveria a possibilidade de playboys saírem por aí assassinando trabalhadores.

Cristiano Fretta é escritor e professor de Português e Literatura.

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