Simone Biles é duas vezes ouro. Uma pelo talento e outra por defender sua identidade
Foto: Luiza Moraes/COB
Haverá sempre um motivo para depreciar uma pessoa negra, despachando-a para um não lugar. Mas ninguém pode negar que a negra norte-americana Simone Biles é a melhor na ginástica mundial e ouro nas Olimpíadas de Paris e que Rebeca Andrade é a primeira mulher brasileira a conquistar quatro medalhas em Jogos Olímpicos.
Em outras palavras, ao dizer “se quiser comentar sobre o cabelo de mulheres negras… apenas não faça”, Biles manda um recado como “aceita que dói menos” para uma sociedade mundial marcada pelo racismo estrutural que insiste em fazer o povo negro permanecer no lugar que a colonização europeia o colocou.
Diante deste fato, quero recordar aqui o meu mestre na luta contra o racismo e pela igualdade racial, Frantz Fanon. Segundo o clássico, uma das formas de combater o racismo é dar-se a conhecer.
Parafraseando o antropólogo Marc Augè, é necessário sair do não lugar, ou seja, daqueles espaços que não dispõem de uma identidade cultural forte, em que as relações humanas se traduzem em relações transitórias e anônimas.
Numa sociedade racista, o negro precisa dar à mostra o rosto e rosto aqui tem um sentido filosófico levinasiano, que quer dizer, todo o ser é a pessoa na sua alteridade absoluta. E mostrar-se, neste sentido, ou seja, dar-se a ver, impor-se, é fundamental no combate ao racismo e à discriminação.
Tantos negros e negras são modelos a seguir nesse sentido: Biles, Rebeca, Daiane dos Santos, Joaquim Maria Machado de Assis (que, diga-se de passagem, foi um literato negro apresentado pelo Brasil como branco); a historiadora negra Beatriz Nascimento, a literata Conceição Evaristo, Maju Coutinho e tantos outros e outras.
Para Fanon, o senso de individualidade e dignidade do povo negro foi roubado pelo “olhar branco” (e olhar branco, quanto a isso, tem um movimento discriminatório de violência e violação dos direitos humanos).
E o caminho eficaz para o resgate dessa individualidade e dignidade é a autoconsciência do negro, manifestada na afirmação da identidade, por mais doída e difícil que seja.
Simone Biles recebe duas medalhas de ouro. Uma pelo talento e outra por defender sua identidade negra e de todas as mulheres.
Vale mencionar aqui o sentido de aparição em George Didi-Hubermann, historiador da arte. A aparição é diferente de aparecer. “A aparição é um evento autêntico, impossível de ser reduzido” (Didi Hubermann).
É o que acontece com as ginastas no auge das suas apresentações. A suas aparições são desconcertantes porque plenas de uma inteireza, de uma verdade de manifestação do que cada uma tem de mais próprio e verdadeiro em suas potencialidades humanas. Elas são pura ‘aparição’. Elas se dão a conhecer. Isso causa admiração ou desconcerto. Alegria ou raiva.
O racismo é uma das doenças do século. Ele não somente priva as vítimas de recursos econômicos e status social, como também, desumaniza e despersonaliza na tentativa de afundá-las num complexo de inferioridade muitas vezes irreversível.
Fazer reconhecer a própria humanidade e dignidade é fundamental. Para isso é necessário defender-se sempre no que diz respeito às características étnicas e nacionais, ou seja, cor da tez, traços, cabelo. ‘Se quiser comentar sobre o cabelo de mulheres negras… Apenas não faça’. E completo Biles: isso se chama racismo velado, dor de cotovelo, ou seja, desespero diante da potência negra.
Rosa Martins é jornalista e religiosa scalabriniana, mestre em Jornalismo, Imagem e Entretenimento pela Fundação Cásper Líbero. Indicada ao Prêmio Tarso Genro de Jornalismo, vencedora do Prêmio Papa Francisco, de Mestrado, pela CNBB. Assessora a Vida Consagrada e Pastorais e Movimentos.