OPINIÃO

As cidades como agentes da desorganização e adoecimento

Por Arthur Beltrão Telló / Publicado em 27 de setembro de 2024

As cidades como agentes da desorganização e adoecimento

Foto: Rawìxel/Freepik

Foto: Rawìxel/Freepik

Em Alfabeto das colisões, Vladimir Safatle conta que “No projeto de Brasília, Lucio Costa fala de como se volta para casa. Esse não é um momento qualquer. Ele (Lucio Costa) diz então que, normalmente, quando volta para casa, um trabalhador passa pela padaria para comprar o pão quente da fornada das dezoito horas. (…) Então, ao menos em seu projeto, em cada comércio de entrequadra seria necessário colocar uma padaria logo à frente (p.25-26)”. Tal reflexão nos lembra de como cada cidade constitui um corpo regulador de vidas, de sujeitos que se chocam ou se repelem, de trajetos que resultam no encontro e no desencontro de pessoas de diferentes classes, muitas dos quais só compartilharão o mesmo espaço durante o serviço doméstico nas casas mais abastadas.

Tal reflexão nos lembra também de que é possível organizar e planejar cidades de modo diferente, para que sejam lugares promotores de associações, de pulsões de vida e criatividade, convívio e cuidado de todos os cidadãos.

Se uma das funções do Poder é delimitar a Lei (e a transgressão só é possível mediante à internalização e aplicação da Lei), o modo como as cidades impõem diferentes vivências e espaços de circulação social é uma das prerrogativas do poder. Um sujeito marginalizado dificilmente circulará nos ambientes das classes privilegiadas e, geralmente, só terá sua existência reconhecida por elas quando o encontro entre ambos vier na forma de violência ou desapropriação. Olhar para esse aspecto faz com que possamos ler as cidades não como um labirinto desordenado, mas como um mapa de intenções, desejos e impedimentos.

Se o transporte público é um caos; se quem foi marginalizado, além de distante dos centros de prestígio, está mais vulnerável ao crime, à crise climática e à poluição; se nas nossas cidades o asfalto come a área verde e, em vez de árvores centenárias, vemos florescer blocos de concreto plantados por construtoras, o texto-cidade nos revela hábitos, rotinas e modos de subjetivação que interiorizamos, um texto cuja mensagem reflete vidas à mercê da violência e da pauperização, vidas cujo trajeto na própria cidade encontra resistências e muralhas marginalizantes que impedem a circulação dos corpos.

Embora não se queira fazer uma apologia nostálgica das cidades arborizadas em que as pessoas se reconheciam por nome e chapéu, e a praça central dividia Prefeitura, Igreja e às vezes alguma escola (aparatos da organização dos corpos e da mediação entre seus encontros e desencontros), é importante constatar que a cidade contemporânea se inscreve como um trauma na paisagem: é descontínua, fragmentária, obrigando o indivíduo a desaparecer na multidão, ou a permanecer em casa e se organizar a partir do enxame das redes sociais, cedendo seu direito de ocupar o espaço para, na virtualidade das relações em rede, seguir modelos de sucesso que impedem a visão das nuvens de fumaça e da destruição da vida contemporânea.

Caminhando por Porto Alegre, notamos o desaparecimento das árvores; a construção de conglomerados de luxo que desembocarão no trânsito caótico ainda mais carros e poluentes; serviços públicos de saúde deficitários e não retomados pós-enchente; muitos anúncios de bancos e de crédito “fácil”; lojas diversas vendendo objetos cuja produção em série é um risco para os recursos finitos do planeta; e, é claro, a proliferação de farmácias, uma vez que, para sobreviver e resistir às formas de vida no século XXI, estamos cada vez mais medicados para nos imunizar aos encontros da vida, às quedas e choques que nos constituem e que poderiam ser uma forma de encontrarmos sentido e a alteridade.

Nesse acumulado de ruínas que constitui nossas cidades, percebemos como elas não promovem à vida, como elas não são para nós. Em ano de eleição municipal, temos nos perguntado seriamente a respeito dos modelos vendidos pelos candidatos a alcaide de como organizarão nossos corpos e espaços, a fim de encontrarmos modos de vida mais livres, interessantes e associativos?

Para que a natureza não invada a civilização como tragédia, é importante olhar para o lugar. Se não nos ligamos ao espaço é porque nossas cidades são cegas, e estamos todos desenraizados e incapazes de ver a paisagem. A colonização europeia veio ocupar, mas não enxergar o território. O mesmo pode ser dito em relação à colonização do espaço promovida por tantos negócios e interesses privados.

Se as fronteiras eram antes lugares de encontros, amores e laços, o que nos diz uma cidade que impede ou mesmo proíbe os encontros?

E, nesse sentido, daqui a poucas semanas, teremos a irresponsabilidade de confirmar mais uma vez um projeto que nos rouba a cidade e devolve problemas travestidos de progresso?

Arthur Beltrão Telló é professor da PUCRS, do Colégio Gabarito e escritor.

 

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