OPINIÃO

Crise climática em tempos de hipertensão sistêmica

Em meio às crescentes tensões geopolíticas mundiais, os governos têm priorizado a segurança energética em detrimento da agenda ambiental
Por Fernanda Brozoski / Publicado em 25 de setembro de 2024
Crise climática em tempos de hipertensão sistêmica

Foto/Agência Brasil/AMA-AL

A seca é uma das faces mais dramáticas da crise climática mundial

Foto/Agência Brasil/AMA-AL

A intersecção de transições energéticas e transformações da ordem mundial é  uma recorrência  lógica  e  comum na História. No século XVIII,  a  substituição  da  lenha pelo carvão possibilitou a Revolução Industrial e alçou a  Inglaterra  à  posição  de  líder  global.  Já no  início  do século XX, a transição do carvão para o petróleo marcou a ascensão dos Estados Unidos como principal potência mundial.

Hoje, em meio à transição dos combustíveis fósseis para as fontes de energia de baixo carbono, atravessamos uma nova reestruturação sistêmica.  Mas, mais do que isso. Mais do que nos encontrarmos em uma confluência histórica habitual, estamos inseridos em um momento crítico de ambos os processos de transformação. Vivenciamos, a uma só vez, a aceleração da crise climática e da crise estrutural do Sistema Interestatal Capitalista, ambas desencadeando eventos catastróficos e disruptivos.

Aumento de eventos climáticos extremos. Degelo polar e elevação do nível do mar a níveis alarmantes. Ondas de calor e frio gravemente intensos. Secas severas  na  Amazônia,  incêndios recordes no Pantanal,  enchentes  no  Sul.  Padrões  de  chuva alterados causando estiagens e inundações devastadoras em todo o mundo. Impactos graves na economia e agricultura, com queda na oferta de alimentos, inflação e insegurança alimentar.

A  crise climática é evidente e profunda. Com o aumento das temperaturas globais se aproximando de 1,5°C,  para  muitos  cientistas  as  metas do Acordo de Paris tornaram-se inviáveis, mesmo com medidas drásticas. As ações de mitigação acordadas já se mostram insuficientes. Sugerem a necessidade de estabelecer novos critérios e focar em ações de adaptação, dada a irreversibilidade dos danos atuais.

Assim como a magnitude das alterações climáticas já causou impactos irreparáveis, algumas transformações estruturais do sistema global também alcançaram um ponto de não retorno. A vertiginosa ascensão econômica chinesa desde as últimas décadas do século passado e o despontar da Rússia como superpotência militar desde os anos 2000, por exemplo, não são mais meros indícios de mudanças profundas. Hoje, a hegemonia ocidental está definitivamente posta em cheque pela sedimentação de  um  novo polo de poder mundial, centrado em uma relação cada dia mais interdependente entre Rússia, China e Índia.

Se antes os sinais da mudança se manifestavam em alinhamentos ainda velados ou com margem para redefinições, hoje, as movidas no tabuleiro geopolítico global demarcam posições explícitas de enfrentamento, tornando a eminência de uma guerra em larga escala uma  ameaça  concreta. Além disso, o persistente desenvolvimento chinês  e  indiano,  que vem tornando sua  classificação  como  “emergentes”  obsoleta, dispara o alarme vermelho para o Ocidente, recrudescendo a competição também na esfera econômica.

A 73ª edição do Statistical Review, publicada em junho pelo Energy Institute (EI), revelou que 2023 foi marcado por recordes em consumo de combustíveis fósseis, produção de petróleo, emissões de gases de efeito estufa (GEE) e geração de energias renováveis. Um combo que resume bem o nosso tempo. Mas qual o resultado dessa equação? Embora as renováveis tenham crescido substancialmente, sua participação no consumo total de energia primária recém atingiu 14,6%.

Segurança energética versus crise climática

Em meio as crescentes tensões geopolíticas nos anos recentes, a priorização da segurança energética em detrimento da agenda ambiental pelos Estados se apresentou com ainda mais força. O relatório World Energy Investment (EI) revela que o investimento no Upstream em 2024 deve voltar aos níveis de 2017, superando a forte queda causada pela pandemia de Covid-19.

A expectativa é que o investimento nesse setor aumente 7% em 2024, após ter registrado um crescimento de 9% em 2023. Esse movimento é impulsionado pelas National Oil Companies (NOCs) do Oriente Médio e da Ásia, que ampliaram seus investimentos em Exploração e Produção (E&P) em mais de 50% desde 2017, respondendo por quase a totalidade do aumento nos dispêndios previstos para o biênio 2023-2024.

Em paralelo, desde meados de 2023, quatro megafusões estão ocorrendo entre petroleiras estadunidenses . É notável que essas operações se concentrem na Bacia Permiana e nas regiões offshore das costas norte da América do Sul e oeste  da  África.  Esse movimento é especialmente significativo por tratar-se do maior produtor mundial de petróleo, os Estados Unidos  –  que  alcançou esse status graças ao seu “novo boom” do petróleo, propiciado justamente pelo desenvolvimento das reservas do Permiano estadunidense.

A intensa competição entre essas  empresas demonstra que atores centrais do O&G reconhecem a importância vital de controlar as reservas e a produção dessas regiões  para manter suas posições de liderança global. Embora não seja válido atribuir diretamente o aumento das emissões de GEE ao crescimento dos investimentos no Upstream — pois, em alguns países, outros  setores  são  os  principais responsáveis pelas emissões, como o agropecuário no Brasil — a retomada dos investimentos em E&P e as  movimentações geopolíticas em torno de reservas estratégicas de fontes fósseis indicam que a aceleração da transição energética  é,  para  as potências centrais, meramente retórica. Na atual reconfiguração sistêmica, esse discurso funciona como artifício de preservação do status quo, mantendo a periferia na  sua  tradicional  posição marginal. Uma versão atualizada de como “chutar a escada”.

 

Em suma, o cenário de hipertensão  sistêmica,  refletido  no risco real de escalada de conflitos globais, reforça a dependência do petróleo e mostra que a transição  energética  permanece  em segundo plano  para  as  grandes  potências.  Estas,  como  as principais emissoras de GEE e grandes detentoras de  capital, possuem uma responsabilidade proporcional na redução da pegada de carbono global. E, no contexto da cooperação internacional, pela capacidade de financiamento que possuem, além de descarbonizar suas economias, poderiam impulsionar a transição energética nos países com recursos limitados para alavancar  esse  processo. Contudo, hoje, os espaços de cooperação têm se mostrado insuficientes para promover ações efetivas contra a crise climática.

Pode soar como um contrassenso afirmar isso às vésperas de o Brasil sediar o G20 e a COP30. No entanto, com uma das matrizes energéticas mais limpas do mundo, o Brasil possui legitimidade para liderar o debate sobre o enfrentamento à emergência climática. Apesar dos desafios políticos e institucionais, como a falta de integração das políticas públicas e a forte influência de setores conservadores nos processos decisórios, o país tem potencial para criar um parque industrial de baixas emissões de CO2 e conta com recursos técnicos e naturais para desenvolver as novas rotas tecnológicas responsáveis pela descarbonização global.

Artigo Crise climática em tempos de hipertensão sistêmica  foi publicado originalmente no Observatório Internacional do Século XXI, setembro de 2024.

Fernanda Brozoski é doutora em Economia Política Internacional (Pepi/UFRJ) e coordenadora de pesquisa do Instituto de Estudos Estratégicos de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (Ineep).

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