OPINIÃO

O impacto ambiental da medicina

Por André Islabão / Publicado em 30 de setembro de 2024
O impacto ambiental da medicina

Foto: Earth.org/ Reprodução

Meio ambiente e medicina: “Um exemplo é o lixo hospitalar – o qual, apesar do nome, não tem sua origem apenas em hospitais – que acabará contaminando o meio ambiente, principalmente em função do descarte inadequado”

Foto: Earth.org/ Reprodução

Será que a medicina tem algum impacto sobre o meio ambiente? É evidente que sim, como as outras atividades humanas. Apesar de este ser um tema pouco discutido, tal impacto é bem maior do que imaginamos. E não se trata de um efeito colateral menor de uma atividade absolutamente imprescindível e que, talvez por isso mesmo, não possa ser minimizado.

A partir do momento em que a medicina também passou a ser regida por uma ética neoliberal, abrimos caminho para excessos e desperdícios que deveriam ser mais amplamente reconhecidos e devidamente minimizados para o bem das pessoas e do planeta.

Um exemplo é o lixo hospitalar – o qual, apesar do nome, não tem sua origem apenas em hospitais – que acabará contaminando o meio ambiente, principalmente em função do descarte inadequado.

Toneladas de resíduos como luvas, máscaras, seringas e embalagens são descartadas diariamente no mundo todo. Como boa parte desse material inclui resíduos plásticos de difícil decomposição na natureza, pode-se ter uma ideia do que isso representa em termos de degradação ambiental. Estima-se ainda que a pandemia de covid tenha aumentado em 10 vezes a quantidade de resíduos plásticos lançados no meio ambiente, o que faz com que ela tenha representado não apenas uma crise sanitária, mas também uma grave crise ambiental.

Outro problema é a contaminação das águas que abastecem cidades no mundo todo. Essa contaminação ocorre por resíduos químicos despejados pela indústria farmacêutica e pelos esgotos domiciliares de centros urbanos repletos de pessoas cada vez mais hipermedicadas.

Considerando que o consumo per capita de medicamentos tem aumentado de maneira impressionante nas últimas décadas, e que a maioria dessas substâncias acaba sendo eliminada pela urina, não é surpresa que as águas que recebem esses dejetos também estejam repletas de resíduos de medicamentos, o que pode causar efeitos prejudiciais sobre os homens e todo o ecossistema.

Há locais onde determinadas populações de peixes estão ameaçadas pela presença de hormônios e medicamentos psicotrópicos nas águas, o que parece atrapalhar a procriação dessas espécies.

Além disso, resíduos de antibióticos lançados no ambiente – seja pelo uso humano ou animal – acabam contaminando o ambiente e podem contribuir para o surgimento de microrganismos resistentes aos antibióticos, o que representa um grande problema para a medicina.

Existe ainda o problema energético causado pelo uso crescente de tecnologias digitais na medicina, como os prontuários digitalizados ou as tecnologias diagnósticas e de comunicação.

Embora haja quem acredite que a computação nas nuvens aconteça em algum lugar etéreo e ecologicamente neutro, a realidade é que cada clique ou pixel registrado ou transmitido acaba sendo armazenado por toda a eternidade em centros de dados gigantes. Estima-se que existam entre 10 e 15 mil desses centros no mundo todo e, em conjunto, seu impacto ambiental pode ser colossal.

O consumo diário de energia elétrica por todos esses centros de dados pode ser equivalente ao consumo total de um país altamente tecnológico e industrializado como o Japão.

Para tornar a situação mais problemática, existe a questão do consumo de água potável, a qual é usada para a refrigeração dessas enormes usinas de dados.

Cada um desses milhares de centros de dados consome, em média, uma quantidade de água potável suficiente para abastecer uma cidade de 50 mil habitantes. E o problema piora se considerarmos que a adoção apressada da inteligência artificial (IA) deve aumentar muitíssimo o consumo de energia e água, uma vez que a intensidade computacional da IA é imensamente maior que aquela da computação habitual.

Como mais de 4 bilhões de pessoas carecem de acesso adequado à água potável no mundo todo, então nossa responsabilidade em relação ao uso adequado desse recurso vital aumenta enormemente.

Por fim, existe a questão cada vez mais discutida dos chamados “congressos médicos”. Embora o encontro presencial com colegas seja importante, na prática milhares de médicos viajam para participar de congressos nababescos e em grande medida prescindíveis, uma vez que as eventuais novidades apresentadas nesses eventos poderiam ser publicadas instantaneamente na internet e até mesmo discutidas virtualmente ou em associações médicas locais sem qualquer prejuízo ao progresso da ciência e à saúde da população.

Em tempos de mudanças climáticas evidentes, reduzir o número e a magnitude desses eventos poderia economizar um bocado em termos de emissões de carbono no planeta.

É importante que a medicina – como outros setores da sociedade – repense o seu impacto ambiental. Como já foi dito, se todo esse impacto fosse causado por serviços e tecnologias absolutamente imprescindíveis que trouxessem benefícios claros para as pessoas, toda essa preocupação seria menos relevante.

Mas uma parte considerável do que fazemos em medicina é irrelevante ou redundante, o que torna muito bem-vindas essas iniciativas que visam reduzir os excessos e desperdícios na área.

Ou seja: o bom senso de médicos e pacientes no uso dos recursos pode não apenas proteger a saúde das pessoas e a sustentabilidade dos sistemas de saúde, mas também ter impacto significativo sobre a viabilidade do planeta em um futuro nem tão distante.

André Islabão é médico, integrante do movimento Slow Medicine Brasil e autor dos livros Slow Medicine – Sem pressa para cuidar bemO risco de cair é voar e Entre a estatística e a medicina da alma – Ensaios não controlados do Dr. Pirro.

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