OPINIÃO

O poço não tem fundo

Por Marcos Rolim / Publicado em 11 de setembro de 2024

O poço não tem fundo

Arte: Fabio Edy Alves sobre fotos de Freepik.com

Arte: Fabio Edy Alves sobre fotos de Freepik.com

No contexto histórico das interações sociais reguladas pelos algoritmos, os grupos de extrema direita têm desempenho muito superior nas redes sociais, produzindo um discurso simplificador e quase sempre falso, mas especulando com problemas reais e se colocando como reais intérpretes da vontade popular

Tradicionalmente, as eleições municipais no Brasil foram marcadas pelo debate de temas locais, bastante deslocados das disputas político-ideológicas nacionais. Até mesmo os arranjos partidários das disputas locais seguiam lógicas distintas daqueles verificados em eleições majoritárias para os governos estaduais e para a presidência. Aparentemente, as coisas não são mais assim.

O Rio Grande do Sul, por exemplo, sofreu um desastre ambiental sem precedentes em maio, o que promoveu, além de prejuízos econômicos de enormes proporções, muito sofrimento, dor, luto, etc.

Os gestores que responderam mal aos eventos climáticos extremos e, particularmente, aqueles cujas gestões foram, por omissão, escolhas equivocadas ou negacionismo, associadas à gravidade dos efeitos do desastre, tiveram desgaste político-eleitoral apreciável. Entretanto, tudo leva a crer que as falhas observadas nas gestões municipais quanto ao sistema de drenagem e contenção de cheias, por exemplo, assim como os temas destacados de gestão nas cidades, como o transporte coletivo, a educação e a saúde, etc., não serão decisivos para a definição de voto da maioria dos eleitores.

Para essa maioria, o alinhamento ideológico prévio – compreendido como uma adesão mais ou menos racional a um discurso – tende a ser o elemento mais forte. Nesse quadro, o próprio debate se afasta do desafio de formulação de políticas públicas eficientes, sendo substituído por uma realidade fantasmagórica, em que ameaças e insultos são lançados desde as trincheiras onde os adversários se entocam.

A campanha eleitoral de São Paulo trouxe ao cenário político a figura bizarra de Pablo Marçal, um ególatra populista com retórica antissistema e patrimônio declarado de R$ 200 milhões. É difícil situar seu perfil e discurso sem ceder ao espanto, mas ele tem boas chances de vencer as eleições em uma das maiores cidades do mundo, caso sua candidatura não seja cassada por abuso de poder econômico. Seu discurso é marcado pela virulência e pelo messianismo. Ele estaria sozinho contra o sistema, mas vencerá todos os obstáculos, declarando-se como “o servo”. Sobre ele, Bolsonaro declarou que “Marçal não tem caráter”, uma frase que, em si mesma, testemunha a radicalidade do problema.

Assim, quando imaginamos que chegamos ao fundo do poço, descobrimos que o poço não tem fundo e que as coisas nunca são tão ruins a ponto de não poderem piorar.

Será preciso estudar o “fenômeno Marçal” mais detidamente e ter presente que aquilo que ele representa não diz respeito apenas a São Paulo. Muito provavelmente, a emergência deste lúmpen-populismo, desde o “fenômeno Bolsonaro”, surge no vazio político criado desde que perdemos a perspectiva da luta por reformas sustentadas a partir de uma crítica contundente às desigualdades, à violência e aos limites e distorções do poder público.

Como a esquerda abdicou dessa tarefa, o caminho ficou aberto para que a indignação diante da má qualidade do serviço público, das injustiças sociais, dos privilégios e da corrupção fosse ocupada pela extrema direita. Ainda assim, entretanto, não seria possível que esse discurso de ressentimento e ódio fosse capaz de cativar milhões de mentes sem a formação de “bolhas” ou “câmaras de eco” na internet, por onde transitam as mais incríveis teorias da conspiração e as mentiras customizadas para diferentes grupos e repetidas infinitas vezes.

Diante das ameaças de golpe de Estado, restou à esquerda a defesa da democracia, o regime político que a tradição marxista sempre classificou como uma forma de dominação burguesa. Acossada pela tormenta do avanço de um movimento de massas de perfil fascista, a esquerda foi à sua dispensa à procura do guarda-chuva da democracia, um espaço “tático”, onde, a rigor, nunca se sentiu confortável. Por não ter acertado contas com sua tradição teórica mais forte, os partidos de esquerda seguem se atrapalhando quando se exige deles coerência com a ideia da democracia como valor universal (para usar o conceito proposto no Brasil, em 1979, por Carlos Nelson Coutinho). A cada “pano passado” para o chavismo, para a gerontocracia cubana, para a ditadura chinesa ou para o regime assassino de Putin, a esquerda permite que seu capital democrático se dilua e que sua crítica ao golpismo pareça um simples discurso oportunista.

No contexto histórico das interações sociais reguladas pelos algoritmos, os grupos de extrema direita têm desempenho muito superior nas redes sociais, produzindo um discurso simplificador e quase sempre falso, mas especulando com problemas reais e se colocando como verdadeiros intérpretes da vontade popular. Já a esquerda parece ter cada vez mais dificuldades para se fazer compreender, porque não propõe uma agenda de reformas, porque sua visão de mundo parece ser a mesma da “guerra fria” e porque, em vez de mobilizar as pessoas contra as injustiças, se aferra ao papel de defensora das instituições.

A situação geral do país, em síntese, parece ser muito grave, e a imagem do Titanic rumando para seu destino, enquanto os passageiros dos lugares mais caros dançam ao som de uma orquestra, parece tão atual quanto foi em 2018.

Marcos Rolim é jornalista, doutor em Sociologia. Escreve mensalmente para o jornal Extra Classe.

rolim.com.br

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