Foto: Redes Sociais
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Nathalia Urban tinha apenas 36 anos. Era uma jornalista brasileira dedicada às grandes questões internacionais e morava na Escócia, mas gostava mesmo de falar de América Latina. Caiu de uma ponte em Edimburgo e morreu dias depois no hospital.
Não se sabe se foi um acidente, se foi empurrada ou se decidiu se jogar. Logo depois de saber da morte dela, no dia 25, o jornalista Ricardo Nêggo Tom, do 247, reuniu amigos para uma homenagem na sua live dos 30 Minutos no Brasil 247.
Fui um dos convidados. Éramos sete jornalistas. Todos choramos, e eu chorei muito, mesmo que fosse, entre todos eles, o mais veterano e certamente o menos próximo de Nathalia. Chorei tanto que que o choro venceu meu esforço para me comportar com alguma racionalidade.
Por que chorar tanto por uma menina que morava há 11 anos na Europa? Que eu via todas as semanas no 247, falando de desigualdades, guerras e crueldade, mas com quem me encontrei, numa live, acho que só uma vez?
Foi quando ela falou dos homens tenebrosos que mandavam na América Latina e eu entrei logo depois, sem saber direito o que dizer, porque Nathalia era rápida, densa, leve, assertiva. Era de uma vivacidade que quase imobilizava quem falasse depois dela.
Como escreveu sua colega de 247 Sara Goes, “Nathalia era melhor em tudo”. Todos nós admirávamos aquela água viva do jornalismo de combate, atenta aos desmandos dos Bolsonaros e Mileis, sempre ao lado de desvalidos e refugiados.
Por isso a internet, logo depois da sua morte, inundou-se do choro dos que a admiravam. E aí então, na busca da racionalidade que não conteve meu choro, fui tentando entender o tamanho daquela dor.
Por que nós, e não só os jornalistas, choramos tanto por Nathalia? Seria por que era jovem? Choramos por que morreu sem que ninguém entenda o que aconteceu?
Na verdade, choramos por ela e pela morte de muitos dos nossos sonhos e das nossas ilusões como jornalista. A morte de Nathalia nos avisou que podemos estar chegando ao limite a ambição de que esse jornalismo de transição para algo ainda gasoso poderia resistir seguindo as mesmas pegadas do século 20.
Mas quase não há mais estrada para o jornalismo que Nathalia insistia em fazer, como nômade, como cidadã do mundo. Nem na chamada grande imprensa brasileira.
Foram ficando estreitos e se extinguiram os caminhos dos que saíam de casa para buscar a verdade, onde ela estivesse, com algum suporte e alguma perspectiva de futuro. Aqui no Brasil mesmo, na América do Sul, na Europa.
As corporações não querem saber mais desse jornalismo abusado e esnobam até os que se oferecem para os frilas mal pagos dos trabalhos eventuais.
Estruturas históricas mantidas pelos jornais brasileiros no Exterior, em Londres, em Roma, em Paris, foram implodidas há pelo menos 10 anos. E as pequenas mídias não conseguem se sustentar.
Sobrevivem os profissionais que chamam hoje de documentaristas, que acompanham guerras como contratados por empreitada, sem vínculos com as empresas. Eles estão em Gaza, na Ucrânia, no Líbano.
Mas a jornalista-ativista Nathalia não era repórter de campo, era da reflexão, da tentativa de compreensão do mundo. Era uma refugiada, que se sentiu discriminada em Londres, porque zombavam até do seu sotaque, e foi morar na Escócia.
Foi recepcionista de salão de beleza, antes de conseguir se dedicar de novo ao jornalismo na Inglaterra. Foi uma das poucas que ainda insistem em fazer jornalismo com dinheiro contado, sem condições de dar carteiraços, sem saber direito até quando terá alcance o que continuam fazendo.
Essa vida de profissional avulsa, solta num mundo que não era dela, mesmo que pudesse ter a pretensão de que fosse, é cruel com os jornalistas do século 21, e muito mais com as mulheres.
Como é cruel com a correspondente da Globo em Jerusalém, Paola De Orte. Com todo o apoio da maior corporação brasileira, com a marca que abre portas, com recursos, Paola sofre para fazer o que faz.
Seus boletins têm sido quase sempre de uma avenida de Jerusalém, num cenário neutro. São corretos, sóbrios, diretos. Porque Paola, que já esteve muitas vezes no campo de guerra, mas já não pode transitar muito, não pode mostrar morte demais, ou será corrida dali pelo governo assassino de Netanyahu.
A cada entrada ao vivo no Jornal Nacional, Paola tem que dizer várias vezes que o Hamas é um grupo terrorista e que o Hesbollah é um grupo extremista.
E citar os nomes das vítimas israelenses, sem conseguir dizer o nome de uma vítima, uma só, do massacre do dia em Gaza. Porque está longe do drama dos que, para Israel e a Globo, não têm nome.
Mas Nathalia Urban não tinha, em recursos materiais, nada do que Paola tem. Era uma das últimas moicanas de uma turma que enxergava a Europa como a terra de sonhos infinitos do jornalismo que ainda se pretende independente ou progressista.
Poucos, os últimos, ainda vivem desses sonhos, quando o jornalismo brasileiro abandona os grandes conflitos mundiais e hoje cobre a guerra na Ucrânia de um escritório em Londres. E os outros? Os outros vão continuar resistindo até quando der, com estruturas cada vez mais precárias e sob a indiferença das organizações.
O choro por Nathalia é o lamento de uma geração de veteranos que se aliam aos mais jovens no cenário de desalento generalizado. O jornalismo dos ciganos está cada vez mais condenado a não ser relevante, porque poucos desejam pagar para ver, ler e ouvir o que eles fazem. Viva Nathalia.
Moisés Mendes é jornalista e escreve quinzenalmente para o Extra Classe.